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Ilustração: "The grave of Lenore", de Abigail Larson. |
Foi uma vez:
eu caminhava, à meia-noite erma e sombria,
a procurar a tumba
de Lenora entre outras tumbas tais,
e, entre
estátuas e sepulturas, uma estranha sombra figura
tão rápida por
meus olhos que mal pude enxergar.
“Quem será?”,
pus-me a questionar, “que vem à mim atormentar”.
Nada
será, nada será.
Lembro-me como
se fosse hoje. Era noite de lua minguante
e velhas
carpideiras iam um velório alegrar, a cantar.
E os poetas
mortos pareciam recitar sonetos em suas catacumbas.
Ruídos
sombrios pareciam surgir de todo lugar, mas, a olhar,
Tudo que via
eram cinzentas sepulturas, inertes e silenciosas.
Apenas
isso e nada mais.
O vento gélido
a rugir na noite nublada, a garoa a cair
em meu casaco
velho como as lembranças que guardo de Lenora.
De quando
dizia “Tu és teimoso, Edgar” e eu, raivoso, fervia.
Ah! Que
saudade trago de Leonora, a mais bela que a aurora,
senhora que
agora jaz sob meus pés, a ser devorada pelos vermes.
E
em breve, nada será.
Os galhos
secos de árvores mortas arfavam em lúgubres movimentos,
E as carícias
do vento frio me davam súbitos calafrios.
E novamente,
tão veloz que mal pude enxergar, da escuridão,
Um estranho
ruído pôs-se a gelar meu coração
Frente à
lápide, ajoelhado, em oração tentei me acalmar:
Nada
será, nada será.
Um chacoalhar
de galhos e negros corvos puseram-se a voar
na névoa
escura e densa a me assombrar, os ossos tremiam
e passei a
sondar a escuridão à volta, nenhum ser vivo à solta.
De súbito, um
silêncio estarrecedor, os galhos se calaram
e pude jurar
ter ouvido uma voz que repetia: “Lenora! Lenora!”
Depois,
silêncio e nada mais.
Com o espírito
envolto em pânico, corri sem rumo entre as colunas
de tumbas
negras enfileiradas, quando, de repente, do nada,
as vozes
voltaram a soar nos tímpanos na madrugada.
“Não é real”,
pensava então. “Deve ser apenas uma alucinação.
Mantenha a
calma! Para tudo há uma explicação.
Não
deve ser nada, e nada será”.
Mas antes que
pudesse me acalmar, da noite escura e sombria
surge a figura
esguia de uma criança a chorar sentada na sepultura.
Tímida e
chorosa, a pequena resmungava alguma coisa
que não se
podia entender, e, naquela hora já curioso, digo:
“Que fazes tu
aqui, criança, nesta noite escura e tenebrosa?”
E
chorosa, disse: “Nada demais”.
Sentei então
sobre um defunto vizinho e fiquei-lhe a observar
os negros
cabelos sobre o rosto invisível à luz do meu olhar,
as vestes sujas
e rasgadas, como quem acabara de se desenterrar.
“Não tens
pais”, pergunto, “que lhe possam acolher em noite fria?
Este torvo
cemitério não é lugar pra ti, guria”. A que me responde:
“Apenas
deixe-me e nada mais”.
Inquieto em
ver tal ser infante naquele antro infernal
Aproximei-me
lentamente, de modo tal, que não pude ser notado,
e, ao seu
lado, toquei-lhe os ombros frios e amargurados.
“Mísera!”,
exclamo, “Tu não podes ser quem amo!”
Fiquei incrédulo
ao ver minha amada Lenora, a mais bela que a aurora.
Lenora estava morta e nada mais.
Sob a luz
pálida e escondida da lua minguante que regia a noite,
inerte e
silenciosa, a pequena Lenora me olhava com frieza, temerosa.
E em seu
rosto, a lembrança aterrorizante da morta amorosa.
“Diga-me”,
digo, “Que és tu senão a encarnação do perigo?
Volte para o
lugar de onde veio e não me leves contigo!”
E
ela responde: “Nunca mais”.
E lá ficou!
Noite após noite a me esperar, sentada em sepulcros,
sempre à
chorar, desenterrada da escuridão onde os corvos nascem.
Alma não
amada, maldade encarnada na figura de minha amada, Lenora.
Criança
descarnada, de olhar medonho e sombrio, que me assombra
em sonhos e
que, desde então, roubou minh’alma e fez-me saber que minha vida
nada
será, nunca mais!
* Releitura de Girotto Brito do poema "O Corvo", de Edgar Allan Poe.