O olhar clemente e julgador
apontava-me toda a minha negligência.

[negligente. negligente.]

como pude deixar que acontecesse?

Abandonei-a.

Abandonei-os todos!

Os olhares eram claros:
[culpado. culpado. culpado.]

a carne exposta
as feridas abertas
as larvas...

Tudo que há de repugnante não evito,
mas aqueles olhos...

[negligente. negligente.]

como pude deixar que acontecesse?


Girotto Brito | 2018
Arte de Paulo Vieira

Fui batizado num lugar desconhecido:
venho de onde não sei.

O passado é um sonho esquecido ao amanhecer:
imagens nubladas, confusas.

Sinto minha existência sem genesis:
sempre estive aqui ao que parece.

Minha mãe quis que fosse assim:
deu-me um deus para adorar quando eu ainda era 
[ um pequeno deus.

Nasci, de fato, 
quando escrevi 
meu primeiro poema.

Girotto Brito | 2018
Arte de Paulo Vieira


A boneca de porcelana
teve há muito tempo uma dona
que a ganhou de presente
em sua festa de doze anos.
A menina cresceu e se casou
e, com pesar,
num baú pôs-se a guardar
a boneca que abandonou.

Teve, mais tarde, uma filha
a quem, aos doze anos,
para fazer feliz a menina,
com a boneca a presenteou.
E foi assim que ela se tornou
uma herança de família,
passando por gerações,
sempre de mãe para filha.

Eis que agora essa relíquia
jaz na estante abandonada.

Fingimos possuí-la,
mas tão logo nos vamos
e ela, no entanto,
permanece
bela e perene,
a boneca por mim herdada.

Sentada à minha frente, mostra-me
como a vida é triste e solene
para quem a abandona
& aguarda, pacientemente,
que eu a presenteie
com uma nova dona.


© Girotto Brito
Pintura "Mulher chorando", de Pablo Picasso.


I

Teus lábios tão escuros — negros —
são noites sem lua,
e não há noites como a tua
tão repletos de segredos.

Sei que te atormenta o medo
do lançar-se no vazio desconhecido,
de ter o peito ainda mais ferido
ao chocar-se, no fundo, em meus rochedos.

Mas lança-te sem qualquer receio
que a vida é assim — escura —,
não te preocupa com a altura
que o fundo é um volumoso seio.

II

Senta do meu lado e diga,
onde dói?
Onde se encontra a ferida?

Em meu peito,
ela dizia,
uma dor cortante e fria.

Sinto aqui dentro
um aperto,
uma agonia.

E seu sorriso
se tornara noite,
não mais um ensolarado dia.

III

Um corpo lançado ao abismo.
Partícula em queda livre
num poço de aforismos,
achismos e pragmatismo.

IV

Teu sorriso parece me ferir
como uma navalha de lâmina enferrujada
a rasgar a carne vil dilacerada
dos golpes que insiste em desferir.

Mas continue sorrindo, ainda assim.
Sorria forçosamente para mim
que teu sorriso é luz celestial,
é noite de festa, de carnaval;
presente dos anjos — dos serafins.

V

Durma comigo essa noite.
Comprei para nós
um filme de amor.

Deita em meu peito,
lhe peço,
sinto saudades — confesso —,
do teu abraço abrasador,
do teu calor,
do teu regresso.

Saudade dos teus lábios escuros
— tão negros —,
dos teus segredos.

Durma comigo essa noite.
Prometo fazer-te esquecer
dos teus medos. 



A quietude me fascina.
Sou homem rocha, estático,
feito para a calmaria — dias sem vento.
Acompanho o fluir dos dias com paciência,
como uma criança que desconhece o tempo.

Foi assim que vi você partir.
Foi assim nosso devir.

Vejo-me olhando tuas fotos sociais,
relembrando aqueles dias atrás
que foram tão felizes e ingênuos,
mas que foram...
Não voltam mais.
E uma força gravitacional
comprime esse coração de pedra
transformando-o em areia — fragmentos.

Foram tantos momentos
e ainda sonho com todos eles.

Sim, faz-se presente na ausência.
Na ausência do corpo
que ainda sinto em minhas mãos.
Na ausência do cheiro,
ainda resquícios em meus pulmões.
Na ausência, sobretudo,
do teu ser em mim.

Mas teve que ser assim (?)

O que me consola é a nossa capacidade
de encontrar a felicidade
em outros corações e laços.

Mas em mim permanece a vontade
de lançar-me dessa cidade
e atirar-me em teus abraços.



Decerto fui ingênuo e imaturo,
ao que me arrependo amargamente.
Hesitei em te deixar, fui negligente
ao aceitar que governasse tudo.
Tomaste de mim o meu mundo
e quando percebi já era tarde.
Agiste como uma fera covarde,
sem pena
sem remorso
sem alarde
lançou-me neste manicômio imundo.

Quando eu sair — e eu hei de sair —,
cobrarei de ti toda dissolução.
Essas paredes não me aprisionarão 
eternamente aqui.
Não queira estar por perto quando eu fugir,
pois vingarei todo o ranger de dentes,
pacientemente,
sem pena      
sem remorso
sem alarde
lançar-me-ei em tua carne,

Pois nesse hospício
o que me resta
é auspício.

Mistério ao vento (1971), de Reynaldo Fonseca.

Fui
e sempre serei
um homem nú-
mero.
Um resultado errado
para os problemas da vida.

Alma trans-
ferida
que não cicatriza.

Gente espontânea-
mente indecisa.

Fui
e sempre serei
um homem só-
brio.

Uma vil incógnita
para uma equação perdida.

Retrato de Jan Švankmajer.

Gotas de soro pingam lentamente,
continuamente a contar o tempo.
Tempo travado, pausado, lento
para o enfermo, para o paciente.

Jogado numa maca qualquer, tal pulha,
algemado como um louco, demente.
O braço inchado, latejante, dormente,
já tantas vezes penetrado por agulhas.

Num corredor vazio e sujo, abandonado
como um mendigo, escória, indigente.
Sem nome, sem história, sem parentes,
ele geme em seu leito, amordaçado.

Tudo ali é o que não é, é indiferente.
É noite, é sombra, é tempestade.
É e não é realidade
a dor que deveras sente.

Silêncio rompido pelo ranger de dentes
do homem, do bicho, do rejeitado
que, embora amarrado e amordaçado,
grita por dentro como qualquer gente.

Tudo em si é o que é:
É vida, é fuga, é vontade.
É e não é sanidade,
quiçá até um tanto de fé.



Nos invernos chuvosos de vidraças embaçadas
Foram tortuosas horas de estupor noturno
Meu corpo frágil, tísico e taciturno
Deitou-se sob o céu, amortalhado

No peito, um incômodo chiado
Arranhando o âmago tuberculoso
Na alma deste horrífico lamentoso
Resquícios de vida, ignorados

Tomo um chá na madrugada fria
Um brinde solitário, uma agonia
Deste defunto ainda não enterrado

Brindo aos mortos e também aos vivos
Aos enfermos, aos esquecidos 
Brindo ao repouso dos corações dilacerados.

"Os Bêbados", pintura de José Malhoa, 1907.


Entre becos e estreitas vielas
De velhas e imundas casas verde-amarelas
Moram os bêbados e aleijados
Moram os cornos e falsas donzelas
Entre moscas e urubus famintos
Nas favelas, nos labirintos
Moram as putas e suas crianças
Também mulheres e homens distintos
Nesta morada de ratos e ratazanas
Onde esgotos e ruas não se diferem
Vivem os homens, também as damas
As prostitutas em suas camas
E os vagabundos pelas calçadas
Vivem pedindo, ao que respondo:
— Não tenho nada!
— Não temos nada!
Somos famintos na madrugada
Todos, um bando de errabundos
Sem rumo, sem metas
Somos nada no mundo
Aprisionados por quem nos cerca
Somos todos ratos do subúrbio
Mergulhados nessa merda toda
Que nos sufoca numa pobreza eterna
E nossos filhos e nossos netos
Não terão casa, não terão teto
Nem direitos, nem alfabeto
Senão como nós, seus pais e avós:
Apenas falsos libertos
Cheios de vermes e solitárias
Vivendo essa vida ordinária
Que nos consome
Mais que nossos próprios vermes
Que nos corrompe
Mais que nossos próprios chefes
Ao que respondo:
— Não tenho nada!
— Não temos nada!
Somos famintos na madrugada.


No teu último suspiro... vi-me em teus olhos
Enxerguei na tua retina minha própria morte

Sacrifiquei tudo que eu mais amava
E enterrei contigo minha pouca sorte

Os nossos dias foram tão felizes
E agora estamos aqui, abraçados

Não como no calor de outrora
Mas agora, dois corpos gelados

O teu, porque o sangue não corre
E mesmo o coração já não bate

O meu, da frieza cruel, assassina
Embora no peito ainda bata um coração escarlate.



Não sou destas águas
Nem destes banhos
Não me criei por estas bandas
Tampouco vivi aqui minha infância

Mas me sinto abraçado
Como todos os filhos legítimos do Caeté

Não fui moleque do mangue
Nem girino de Igarapés
Não me vestiram de Marujo
Tampouco o Santo beijei os pés

Mas me sinto acolhido
Como todos os Marujos de São Bené

Não aprendi a catar caranguejo
Nem viajei nos vagões do trem
Não estudei no Mâncio Ribeiro
Há pouco daqui não conhecia ninguém

Mas me sinto um legítimo bragantino
Que é que esta terra tem?

Não sou ribeirinho dos canais de Ajuruteua
Nem ao menos sei pescar de rede
Não acredito das crendices populares
Tampouco da fé mato minha sede

Mas me sinto carinhosamente beijado
Pela atmosfera sempar caeteuara

Vim de longe
De muito longe
Onde as águas são doces
E os amores foram salobres

Mas o tempo me trouxe
Para esta terra de água salgada
Onde encontrei o sossego
Onde encontrei minha amada.

Ilustração: "The grave of Lenore", de Abigail Larson.

Foi uma vez: eu caminhava, à meia-noite erma e sombria,
a procurar a tumba de Lenora entre outras tumbas tais,
e, entre estátuas e sepulturas, uma estranha sombra figura
tão rápida por meus olhos que mal pude enxergar.
“Quem será?”, pus-me a questionar, “que vem à mim atormentar”.
Nada será, nada será.

Lembro-me como se fosse hoje. Era noite de lua minguante
e velhas carpideiras iam um velório alegrar, a cantar.
E os poetas mortos pareciam recitar sonetos em suas catacumbas.
Ruídos sombrios pareciam surgir de todo lugar, mas, a olhar,
Tudo que via eram cinzentas sepulturas, inertes e silenciosas.
Apenas isso e nada mais.

O vento gélido a rugir na noite nublada, a garoa a cair
em meu casaco velho como as lembranças que guardo de Lenora.
De quando dizia “Tu és teimoso, Edgar” e eu, raivoso, fervia.
Ah! Que saudade trago de Leonora, a mais bela que a aurora,
senhora que agora jaz sob meus pés, a ser devorada pelos vermes.
E em breve, nada será.

Os galhos secos de árvores mortas arfavam em lúgubres movimentos,
E as carícias do vento frio me davam súbitos calafrios.
E novamente, tão veloz que mal pude enxergar, da escuridão,
Um estranho ruído pôs-se a gelar meu coração
Frente à lápide, ajoelhado, em oração tentei me acalmar:
Nada será, nada será.

Um chacoalhar de galhos e negros corvos puseram-se a voar
na névoa escura e densa a me assombrar, os ossos tremiam
e passei a sondar a escuridão à volta, nenhum ser vivo à solta.
De súbito, um silêncio estarrecedor, os galhos se calaram
e pude jurar ter ouvido uma voz que repetia: “Lenora! Lenora!”
Depois, silêncio e nada mais.

Com o espírito envolto em pânico, corri sem rumo entre as colunas
de tumbas negras enfileiradas, quando, de repente, do nada,
as vozes voltaram a soar nos tímpanos na madrugada.
“Não é real”, pensava então. “Deve ser apenas uma alucinação.
Mantenha a calma! Para tudo há uma explicação.
Não deve ser nada, e nada será”.

Mas antes que pudesse me acalmar, da noite escura e sombria
surge a figura esguia de uma criança a chorar sentada na sepultura.
Tímida e chorosa, a pequena resmungava alguma coisa
que não se podia entender, e, naquela hora já curioso, digo:
“Que fazes tu aqui, criança, nesta noite escura e tenebrosa?”
E chorosa, disse: “Nada demais”.

Sentei então sobre um defunto vizinho e fiquei-lhe a observar
os negros cabelos sobre o rosto invisível à luz do meu olhar,
as vestes sujas e rasgadas, como quem acabara de se desenterrar.
“Não tens pais”, pergunto, “que lhe possam acolher em noite fria?
Este torvo cemitério não é lugar pra ti, guria”. A que me responde:
“Apenas deixe-me e nada mais”.

Inquieto em ver tal ser infante naquele antro infernal
Aproximei-me lentamente, de modo tal, que não pude ser notado,
e, ao seu lado, toquei-lhe os ombros frios e amargurados.
“Mísera!”, exclamo, “Tu não podes ser quem amo!”
Fiquei incrédulo ao ver minha amada Lenora, a mais bela que a aurora.
 Lenora estava morta e nada mais.

Sob a luz pálida e escondida da lua minguante que regia a noite,
inerte e silenciosa, a pequena Lenora me olhava com frieza, temerosa.
E em seu rosto, a lembrança aterrorizante da morta amorosa.
“Diga-me”, digo, “Que és tu senão a encarnação do perigo?
Volte para o lugar de onde veio e não me leves contigo!”
E ela responde: “Nunca mais”.

E lá ficou! Noite após noite a me esperar, sentada em sepulcros,
sempre à chorar, desenterrada da escuridão onde os corvos nascem.
Alma não amada, maldade encarnada na figura de minha amada, Lenora.
Criança descarnada, de olhar medonho e sombrio, que me assombra
em sonhos e que, desde então, roubou minh’alma e fez-me saber que minha vida
nada será, nunca mais! 


* Releitura de Girotto Brito do poema "O Corvo", de Edgar Allan Poe.


Tua sombra faz figura à luz da escuridão
Teus traços me assombram
Envoltos na penumbra do teu quarto
Solitária entre a multidão

Do pouco que enxergo, guardo
Bem fundo na memória de mim
Guardo o teu olhar profundo
Que me penetra, afim

De vasculhar-me por inteiro
Do âmago, descobrir meus segredos
Fazer de mim um ser sombrio
Metade nada, metade cheio

Venha, dama dos meus sonhos!
Vem fazer de mim teu mausoléu
Enterra-me em ti, nos teus seios fartos
Mostra-me teu céu

Estou disposto a viver contigo a escuridão
Morar no teu colo de frenesia
Sentir tua pele fria tocar a minha
Compartilhar da tua melancolia e maldição.


© Girotto Brito
© 2014 O Poeta e a Madrugada Traduzido Por: Girotto Brito - Designed By Girotto Brito.