Numa noite nublada do inverno de 1823, na pequena
cidade de Santa Brígida, nasceu uma criança diferente de todas que eu já
conheci em minha vida. Completamente normal, exceto pelo fato de possuir uma
característica única, jamais vista por qualquer ser humano. O garoto tinha olhos
cujas córneas eram vermelhas vibrantes, como chamas incendiando seu interior, e
todos, inclusive a parteira, ficaram aterrorizados quando a criança abriu seus
olhos pela primeira vez. Acreditavam que ele nascera com a maldade dentro de si,
e até Anne, que era a mãe, não aceitou o filho alegando que ele estava possuído
pelo próprio demônio. O pai da criança, Júlio Salazar, contrariando todos os
habitantes da cidade, resolveu criar o estranho garoto em um pequeno sítio aos arredores de Santa Brígida.
A criança de olhos vermelhos recebeu o nome de Edgar Salazar e cresceu normalmente na
companhia de seu pai. Poucas pessoas iam até o sítio, e os que se aventuravam a
ir até lá para vender suprimentos ou fazer cobranças, evitavam olhar em seus
olhos e nunca falavam com ele. Apesar dessa falta de convívio social, Edgar
cresceu normalmente, como qualquer outra criança: brincava, lia seus livros e
adorava quando seu pai contava estórias.
Quando percebeu que não viveria por muito tempo, Júlio
chamou Edgar em seu leito e disse-lhe:
— Edgar, meu filho. Nunca acredite que seus olhos
torna você inferior a outras pessoas. Eles são uma benção e você tem um dom
incrível. Logo estará sozinho e muitas coisas ruins podem lhe ocorrer, mas seja
forte, corajoso e busque sua liberdade, sempre.
Poucos minutos depois ele viu seu pai morrer.
No dia seguinte, um vendedor de queijos foi até o
sítio e encontrou Júlio morto e a criança deitada ao lado do cadáver de seu pai.
Edgar foi levado para o Orfanato São Cristóvão, na cidade, e lá viveu por
muitos anos sendo maltratado, humilhado e agredido. Foi tratado como um animal
desde o momento em que chegou naquela instituição, e ele sabia que era por
causa dos seus olhos. Todos o chamavam de aberração, filho do diabo e outras
denominações absurdas. Ele não revidava, apenas baixava sua cabeça e tentava
evitar as agressões. Sua cama era uma esteira de palha jogada num canto úmido do
depósito, separado de todos os outros órfãos, e alimentava-se dos restos que
sobravam das refeições dos outros, quando sobrava alguma coisa. Era impedido de
assistir as aulas de Aritmética e Discurso junto com os demais alunos,
então ele abrira uma pequena fenda na parede do depósito, ao lado da sala de aula,
para que pudesse espiar por lá o que se ensinava aos outros. Seu único livro se
chamava O homem que tudo sabia,
encontrado em uma sarjeta, e era sua companhia solitária de todas as noites. Já
o tinha lido dezenas de vezes.
Edgar viu muitos órfãos serem adotados e saírem
daquele lugar, mas isso era impossível para ele, pois nem sequer era
apresentado aos casais que iam ao orfanato à procura de crianças e jovens. Ele
sabia que não havia um futuro para ele ali, onde seus olhos mostravam-lhe que
estava cercado por pessoas inescrupulosas, gananciosas e perversas.
Foi numa manhã chuvosa do inverno de 1840 que Edgar
teve sua oportunidade de fugir do orfanato, e assim o fez. Aproveitou a forte
ventania que derrubou parte do muro dos fundos e correu desesperadamente para
sua liberdade. As únicas coisas que levou consigo foi seu livro, protegido para
não molhar, e o relógio que pertenceu ao seu pai, que ele guardou por todos
esses anos. Correu sem rumo, mas com muito vigor, para que nunca o alcançassem.
Percorreu centenas de quilômetros como um andarilho,
se alimentando de frutas e animais que caçava, passando por diversas cidades e
vilas, e por todos os lugares as pessoas tremiam ao ver seus olhos, e por vezes,
Edgar precisou fugir para não ser apedrejado ou aprisionado como um animal, até
que num certo dia nossos destinos se cruzaram. Eu era um velho vendedor de
óculos da província de Belo Monte e viajava em busca de matéria prima para
minha pequena fábrica quando o avistei sentado no pé de uma enorme mangueira.
Parei para oferecer um pouco de água e pão ao pobre rapaz e confesso que fiquei
trêmulo quando vi aqueles olhos vermelhos. Olhos que podiam ver minha alma. No
entanto, meu ofício já tinha me permitido conhecer diversos tipos de anomalias
em olhos de muitas pessoas e pensei se tratar de apenas mais uma, apesar de
minha intuição dizer que aqueles eram diferentes.
Apesar de demonstrar tamanha timidez, ele aceitou sem
rodeios o que lhe ofereci, respondeu quando eu perguntei seu nome e de certa
forma ele ganhou minha simpatia e resolvi convidá-lo para trabalhar comigo.
Edgar ficou muito surpreso com meu convite e posso jurar que vi um fio de
lágrima sair daqueles olhos, e com razão, afinal de contas eu tinha sido o
único, exceto seu pai, que lhe demonstrara consideração.
— Pois bem, Edgar. Suba na carroça que iremos para
casa.
Naquela época ele devia ter uns dezessete anos, era
forte e se mostrou muito inteligente no trabalho que lhe coloquei. Dei-lhe roupas
decentes e um quarto nos fundos da fábrica. Depois de ter tomado banho, cortado
o cabelo e vestido as novas roupas, nem parecia o mesmo jovem, exceto pelos
seus inconfundíveis olhos que estavam sempre a flamejar.
Certo dia, quando eu estava negociando um grande lote
de óculos com um comerciante estrangeiro, Edgar me chamou e disse que não era
para eu vender para aquele homem. Eu achei um absurdo sua intromissão em meus
negócios e ordenei que ele voltasse a fazer o serviço que lhe cabia, mas ele
insistiu e eu disse que se ele não fosse fazer o que eu estava mandando, eu o
mandaria embora. Ele se calou imediatamente e retornou aos seus afazeres. Eu
concluí a negociação e tive o maior prejuízo da minha vida. O estrangeiro era
na verdade um farsante, que se fez passar por dono da Universidade Luterana de
Linoia, do país vizinho.
Após esse trágico incidente, as finanças da minha
fábrica ficaram negativadas e intrigado eu fui pedir explicações para Edgar, que
me falou do seu incrível dom. Fiquei espantado com aquilo, mas desculpei-me e
pedi que me ajudasse a levantar a fábrica novamente, e ele como sempre não se
negou a me ajudar.
Apesar de aqueles olhos lhe darem uma aparência
incrivelmente demoníaca, Edgar sempre teve um bom coração e não guardava rancor
nem mesmo daqueles que lhe torturaram e agrediram por anos.
Depois que ele começou a trabalhar diretamente comigo
no financeiro a fábrica progrediu numa velocidade espantosa, de tal maneira que
em pouco mais de três anos eu já era um dos homens mais ricos da cidade, e como
recompensa, também tornei Edgar muito rico. Não tínhamos prejuízos, apenas
lucro, e os rumores do homem de olhos vermelhos que fabricava óculos trouxe
muitos curiosos que, involuntariamente, acabaram se tornando clientes.
Edgar havia mudado bastante nesse tempo, o convívio
amigável com clientes, empregados e negociantes o tornou mais seguro e o fato
dele passar a ser um rico fabricante mudou aquela velha visão preconceituosa
que tinham sobre ele, não totalmente, é claro, mas diminuiu muito e isso fez de
Edgar um homem muito mais confiante em si mesmo. Já havia perdido a vergonha
que tinha dos seus olhos e passou a exibi-los com orgulho pelas ruas, mesmo
vendo na maioria das pessoas que lhe observavam, a aura negativa que indicava o
julgamento que faziam dele.
No início da primavera, numa tarde bastante
ensolarada, Edgar foi abordado por uma jovem na rua que lhe pedia ajuda. Era
para ser uma situação rotineira, já que Edgar estava acostumado a ver crianças
e jovens pedindo pelas ruas da cidade, mas dois detalhes naquela moça chamou
muito sua atenção: Ela não se importou
com seus olhos vermelhos e ele não conseguia enxergar nela o que enxergava em
todas as outras pessoas. Edgar não conseguiu identificar as reais intenções
daquela desconhecida. Ele olhou então para várias pessoas que caminhavam pela
rua para testar seus olhos, mas estava tudo normal, podia ver com precisão o
caráter de cada uma das pessoas que por ali passavam, menos daquela mulher.
O nome daquela bela moça era Julliane, e pedia
dinheiro para ajudar sua mãe que estava muito doente. Ele prometeu ajudá-la e
fez questão de ir até a casa da mulher para conhecer sua mãe. Chegando lá, a
adoecida senhora se encontrava dormindo, mas Edgar reparou que seus olhos também
não conseguiam enxergar nada na mãe de Julliane. Depois desse episódio, ele voltou várias vezes
na casa dela para levar comida, roupa e medicamentos, mas nunca encontrara a
mãe da moça acordada.
Os frequentes encontros entre Edgar e Julliane
acabaram aproximando-os, e não demorou muito para que se apaixonassem. Ela o
aceitava da maneira como ele era, e nem sequer questionava o porquê daqueles
olhos serem vermelhos e isso era tudo que Edgar precisava. Era a demonstração
mais pura do amor, onde o que importava era a vontade que tinham de ficarem
juntos, de se ajudarem e proporcionarem constantemente os momentos de
felicidade que compartilhavam. Não havia anomalias, crenças, interesses
próprios, preconceitos ou qualquer outra coisa que interferisse no objetivo
comum de ambos.
Com Julliane, Edgar conheceu e desfrutou dos prazeres
da carne, se entregando totalmente a ela. Estavam felizes e após alguns meses
juntos decidiram que iriam se casar. Edgar já havia comprado terras ao norte da
cidade e formado vastas fazendas que cultivavam arroz e trigo, e eu ampliei a
fábrica de óculos e montei outras três filiais nas províncias vizinhas. Ele
sempre me visitava para conversarmos sobre sua vida. Não lhe faltava dinheiro e
seu casamento seria uma boa realização, mas ainda tinha um problema: Precisa
pedir a mão de Julliane para a mãe, que ainda não o conhecia.
Após retornar de uma longa viagem ao país de Gales,
que durou dois meses, Edgar recebeu um recado de Julliane contando que sua mãe
havia melhorado consideravelmente e que ele já poderia ir se apresentar à sua
mãe e fazer o pedido de casamento. Ele não pensou duas vezes, tomou um banho,
vestiu seu melhor smoking, colocou
seu chapéu e foi ao encontro da sua amada.
Julliane já havia contado para sua mãe de seu
namorado, e o quanto ele havia ajudado em sua recuperação. A velha mulher
estava curiosa para conhecer o rapaz e agradecê-lo por tudo, porém ainda não
sabia do pedido que a ela seria feito.
Era por volta de seis da tarde e o sol já se punha no
horizonte quando mãe e filha ouviram o bater da porta. — Ele chegou. — disse Julliane, radiante, que correu para recepcionar
seu noivo. Edgar entrou, cumprimentou sua amada e se dirigiu para a sala de
estar. Postou-se frente a velha senhora, tirou seu chapéu e apresentou-se.
— Edgar Salazar, muito prazer.
Nesse momento, a mulher arregalou os olhos e soltou um
grito aterrorizante, se jogando no chão, tomada de um desespero que Edgar não
conseguia explicar. Julliane correu para ajudar sua mãe, e também não entendia
o porquê de tanto medo.
— Era para você estar morto! Você não é deste mundo,
criatura! — gritava raivosamente a mulher jogada ao chão.
A princípio, Edgar achou que tudo aquilo fosse por
medo dos seus olhos, mas imediatamente entendeu o que se passava ali quando
observou o quadro pendurado na parede com o retrato da mãe e da filha com seus
nomes escritos: Anne & Julliane. A vaga lembrança daquele passado distante
e cheio de dor retomou seu lugar na sua cabeça e Edgar se lembrou da única vez
que seu pai mencionou o nome da sua mãe: “Anne
era uma mulher incompreensível, Edgar. Não me pergunte mais sobre ela”.
A mulher da sua vida, que dividiu incontáveis momentos
de alegria e prazer, com quem estava pronto para se casar, na verdade era sua
irmã. Sua única irmã! E a mulher que o
abandonara ainda na maternidade, que foi responsável por boa parte de todo o
sofrimento que passou em sua vida, apenas porque acreditava que ele era uma
aberração, de repente reaparece e estava ali, caída à sua frente.
Edgar não questionou sua mãe, apenas beijou o rosto de
Julliane e partiu lamentando o que poderia ter vivido ao seu lado, os filhos
que poderiam ter tido e toda a felicidade que acabara ali, naquele momento.
Despediu-se com um simples “Sinto muito”,
aos berros de sua mãe que pedia aos céus proteção contra aquele diabo.
Desde então, ninguém que eu conheça jamais viu Edgar
Salazar novamente, que abandonou suas terras, dinheiro e deixou para trás todas
as lembranças boas e ruins que vivera ali, carregando consigo somente a
maldição daqueles rubros olhos, capazes de enxergar muita coisa, menos o
caminho para sua felicidade.
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Comente o que achou desse conto.
Sua opinião é muito importante para mim. ▼▼▼
Nossa Dênis, imaginando uma adaptação para um longa! Adorei!
ResponderExcluirPnsei até no poster do filme..rs
Abraços.
Muito obrigado, Dell Costa.
ExcluirNossa, fantástico!
ResponderExcluirAdorei.
puta que pariu doido
ResponderExcluiradorei prof
cara concordo com o cara ali de cima
isso ia dar um belo dum filme cara
seria muito pedir um final feliz apenas uma vez?
adoro finais tragicos e vc é especialista nisso mas queria ver como se sairia fazendo o contrario hahahahahaha
desafio lançadooo
marcellepires.blogspot.com
Muito bom
ResponderExcluirVida cheio de altos e baixo e uma pouco de ironia.PERFEITO.
muito boa a hisoria, final triste, mas maravilhosa!
ResponderExcluirVelho. Parabéns, de verdade. Ficou show!
ResponderExcluirCara, o conto ficou muito bom. Foda mesmo! Parabéns pela qualidade dos seus contos e poesias, estou sempre passando aqui e acompanhando tudo. :)
ResponderExcluirAbraço.
Parabéns, uma história muito boa! Me prendeu na leitura até o final o.O
ResponderExcluirMuito bom o texto. Achei os personagens: Edgar parecido com o Ciclope e Juliane com a Bela do crepúsculo. Só que vc sempre acaba com minha expectativa de final feliz... kkkkkk.. Parabéns Cadori, .. Uma estória que fala de luta, preconceito, superação etc.. Muito massa..
ResponderExcluirMuito bom;
ResponderExcluirEste olho é de dar medo hein?
Histórias, estórias e outras polêmicas
Caraca me arrepiei, daria um ótimo livro, já pensou nisso ??
ResponderExcluirameiii demais , fiquei curiosa para ler mais contos, você escreve maravilhosamente bem !!
Beijos amigo s2
Não só já pensei como estou escrevendo Lêeh :)
ExcluirObrigado a todos pelos comentários, a participação de vocês é muito especial. :)
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