Edgar acordou na madrugada e viu-se deitado sobre o
gélido cadáver de seu pai. Não havia mais lágrimas, somente uma profunda dor
irreparável e o medo da solidão. Júlio Salazar não foi um homem qualquer, ele
era um herói, que salvou sua vida e o educou e merecia um fim digno de seus
feitos, assim como o grande Dom Félix de Bocarta,
cavaleiro lendário e protagonista de muitas das estórias ouvidas por Edgar, que
após muitos anos de batalha acabou sendo gravemente ferido e preferiu atear
fogo em si próprio a deixar que seu povo o visse apodrecer e ser devorado pelos
vermes nos campos de guerra.
Sem pressa, Edgar amontoou vários móveis, roupas e
livros ao redor da cama de seu pai. Com exceção do seu livro predileto, O homem que tudo sabia. Organizou tudo,
formando uma grande pilha de coisas em cujo centro estava o maior guerreiro que
ele já havia conhecido. Espalhou palha seca por toda a estrutura e com uma
lamparina acendeu o fim dos dias de Júlio Salazar.
Por alguns minutos o garoto ficou no quarto
assistindo as chamas devorarem os tão preciosos livros, as roupas e tudo aquilo
que Júlio levou anos para conquistar. As estórias não seriam mais contadas, as
cabras não seriam mais cuidadas, as plantações morreriam e morreriam também as
hortaliças e as frutíferas, mas Júlio Salazar nunca estaria morto. Não para
Edgar. E lembrando-se da velha estória de Dom
Félix de Bocarta, o menino dos olhos vermelhos cantou para seu pai a mesma canção
cantada ao cavaleiro pelo seu melhor amigo e companheiro de muitas batalhas.
Vá
em paz, guerreiro de Bocarta
Sua
espada muito nos orgulha
Sua história
será sempre cantada
Às
crianças que nos esperam
Vá
em paz, herói de nossa terra
Seu
escudo será para sempre guardado
Que seu
sangue, derramado nesta guerra
Para
sempre seja louvado.
— Descanse em paz, meu pai — disse Edgar já sendo
expulso do quarto pelo forte calor das chamas.
♠ ♠ ♠
Mesmo na madrugada, as enormes labaredas de fogo
que consumiam a casa por completo chamaram a atenção de alguns vizinhos que, em
minutos, chegaram à propriedade dos Salazar para verificarem o que estava
acontecendo. Os quatro primeiros que chegaram foram Martinez e sua esposa
Adelice, Ernest, que é o filho mais velho da família Winterst e o caseiro dos
Brandebuks, chamado Vicent Pugas.
Ao chegarem ao portão, a cena era de um garoto
postado de pé no gramado, olhando para a casa em chamas. As quatro pessoas que estavam
ali sabiam que Júlio Salazar tinha um filho, mas deles, só o velho Martinez já
havia visto o garoto, e de longe. Por alguns segundos ficaram parados
observando o menino ajoelhar-se em silêncio, mas logo todos correram para
socorrê-lo.
Edgar pensava em como seria sua vida a partir
daquele momento. Ainda era uma criança e mesmo assistindo a morte de seu pai
ainda era difícil para ele acreditar que estava completamente só. As últimas
palavras de seu pai ainda ecoavam em sua cabeça e o faziam temer o futuro que
lhe esperava. Se ao menos eu tivesse uma mãe — pensou. Mas não tinha ninguém.
Nem mãe, nem tia, nem sequer um amigo que pudesse estar com ele naquele momento
de dor.
As vigas de madeira começavam a cair e aos poucos a casa ia desabando quando de repente Edgar sente um homem agarrar-lhe.
— O que aconteceu, garoto? Você está bem? E seu
pai? — disse Vicent Pugas, que foi o primeiro a chegar ao menino.
Edgar fechou os olhos e manteve a cabeça baixa.
Tinha medo que se assustassem e o deixassem novamente sozinho.
— Responda menino. Cadê seu pai? O que aconteceu? —
insistiu o caseiro.
Clemente Martinez e sua esposa gritavam pelo nome
de Júlio Salazar, mas não obtinham resposta e enquanto isso Ernest Winterst
acompanhava tudo calado. Então todos se juntaram ao redor de Edgar e começaram
pressionar-lhe para que falasse alguma coisa. Ele estava com medo e nem sequer
tinha coragem de abrir os olhos para enxergar quem tentava o ajudar.
— Fique calmo, garoto. Não estamos aqui para lhe
fazer mal. Só queremos saber onde está seu pai para que possamos o ajudar. Confie
em nós — falou Martinez.
O menino reconheceu a voz do homem que ajudara seu
pai com as cabras e bodes. Sempre que Martinez ia conversar com Júlio, Edgar se
escondia para ouvir. É o criador de cabras, eu gosto dele — pensou.
— A peste matou meu pai e agora ele queima naquela
casa, senhor.
Todos ficaram chocados com a notícia da morte de Júlio
Salazar e ao mesmo tempo aliviados porque o garoto havia falado e tudo parecia
estar bem com ele.
— Lamentamos muito. Seu pai, como todos os Salazar
que já conheci, era um grande homem. Forte e trabalhador. — disse Martinez
repousando as mãos sobre os ombros de Edgar — Agora venha conosco. Eu e minha
esposa te levaremos para nossa casa até que saibamos como resolver essa situação.
Edgar sabia que não tinha para onde ir e o Sr.
Martinez era um homem confiável, como ele mesmo já havia enxergado. No entanto,
tinha medo que quando abrisse os olhos a reação daquele homem não fosse a mesma.
Ainda assim, concordou fazendo um gesto com a cabeça e Martinez o pegou no colo
e se dirigiu à sua casa com sua mulher ao lado, esgueirando-se entre outras
pessoas que já chegavam por ali.
Hernest e Vicent chegaram a comentar um no ouvido
do outro o fato do garoto não ter aberto os olhos em nenhum momento, mas concluíram
que ele devia estar evitando olhar para a casa onde o corpo de seu pai queimava
ou que era uma reação traumática natural para uma criança naquela situação.
Embalado pelo cansaço, o sofrimento e o balanço das
passadas do velho Martinez, Edgar foi lentamente adormecendo no aconchego
daquele colo. Em seu pensamento, a voz de seu pai foi gradualmente sumindo, ao
passo que ainda pôde distinguir a última frase: “Sempre acreditei em você e sempre acreditarei”.
Excelente Denis,
ResponderExcluirParabéns querido, Desejo-lhe muito sucesso!!!
Seus escritos são valiosos.. :-)
Incrível! Gostei bastante, meio tenso na parte da casa pegando fogo o.O
ResponderExcluirMuito boa :)
Acabei de ler...chorei...Gente que veia pro trágico né?Maravilhosamente perfeito, com as riquezas de detalhes que adoro!!!
ResponderExcluirParabéns!!!
Cara, massa demais essa história. Aguardando o próximo capítulo.
ResponderExcluir:)
Obrigado a todos pelos elogios e por interagirem com esse espaço.
ResponderExcluirEm breve postarei a próxima parte.
Muito interessante;
ResponderExcluirVamos ver o que acontecerá com o menino.
Histórias, estórias e outras polêmicas
Puxa como torço por este menino. Não acredito que ele seja demônio, creio mais é que seja anjo. Me dá vontade criar a sequência das falas do menino. (hoje eu lí 2 cap)
ResponderExcluirParabéns Dênis pela estória linda.
Rsrs, realmente Celso. As pessoas muitas vezes julgam e condenam pela aparência, e Edgar Salazar é um exemplo disso. Fico feliz que esteja gostando da estória. Obrigado pela participação.
ExcluirHaja coragem para fazer o que esse guri fez. Tomara que ele não fique só...
ResponderExcluir