O Pescador, óleo sobre tela por Henry Scott Tuke (1858-1929) |
Embora exausto, após 14 horas de
árduo trabalho, ele não conseguia sequer pensar em ir para casa dormir. Xavier
estava intrigado com os acontecimentos recentes de sua pequena cidade, e a
população exigia dele respostas pelas mortes em circunstâncias nunca antes
presenciadas por aquelas bandas. Seu posto de Delegado sempre fora muito
tranquilo e, quase sempre, se resumia em resolver brigas de bares ou
desentendimentos familiares, mas dessa vez as coisas mudaram: em menos de dez
dias, três corpos encontrados, todos à margem do Rio Caeté, amarrados com linha
de pesca em árvores do mangue e com vários anzóis perfurando partes dos corpos.
O primeiro corpo encontrado foi o
da adolescente Eva Kátia, dezesseis anos, filha de uma professora. Foi um
choque para a pacata cidade e o prefeito logo decretou luto oficial devido à
brutalidade do assassinato. A primeira suspeita foi a de um possível estuprador;
no entanto os peritos da capital descartaram qualquer chance da garota ter sido
molestada. A morte ocorreu por enforcamento, devido à pressão exercida no
pescoço da vítima pelas linhas de pesca. O motivo? Ainda não fora esclarecido.
A garota era exemplar em casa, na escola, e não possuía inimizades. Saíra para
ir à casa de uma amiga e desaparecera no percurso.
As duas vítimas seguintes foram
Pedro da Luz, dezenove anos, filho de pescador, e Jussara Martins, vinte e três
anos, secretária da escola onde Eva Kátia estudava. Ambas em circunstâncias
muito semelhantes − saíram à noite para visitar alguém e não voltaram.
Xavier estava naquele momento
acompanhando o trabalho dos peritos às margens do rio, onde encontraram a
terceira vítima. Até o momento não havia nenhum suspeito, apenas dúvidas e
muita pressão para que resolvessem logo esse caso. Afinal, quantos mais iriam
morrer?
Terminado o trabalho, retornou
para sua casa. Já era noite e chovia muito. Tomou um banho, jantou e se
preparava para dormir, quando seu cachorro começou a latir freneticamente.
Xavier sabia que não era normal seu cão fazer tal estardalhaço e resolveu
verificar o motivo daquilo. Quando saiu, o animal já havia parado de latir, mas
estava farejando um embrulho jogado em sua garagem. A pequena caixa de papelão,
amarrada com linhas de pesca, provocou calafrios no delegado, pois ele sabia –
ou imaginava − quem havia deixado aquele pacote ali.
Na caixa havia apenas anzóis
molhados em sangue e um papel sujo, com os dizeres:
Quando o silêncio faz ouvir o pensamento
e o vento frio corta a carne embranquecida,
da penumbra ela surge impiedosa,
Do inferno, em cinzas, renascida.
Tenha uma boa noite, Dr. Xavier.
A mensagem era clara, mas ao mesmo
tempo enigmática. Clara, pois não deixava dúvidas de quem a havia escrito, mas
enigmática, por não dar pistas de futuras vítimas. O fato de ter sido enviado
diretamente a ele o fazia crer que também poderia ser uma futura vítima, ou o
assassino estava apenas querendo testar a perspicácia da polícia. No dia
seguinte, Xavier entregou tudo aos peritos e pediu para que averiguassem o
material.
A população estava em pânico por
causa do Pescador – como chamavam o
assassino pela cidade – e já havia cinco dias desde que encontraram a última
vítima. Os moradores evitavam sair à noite.
Naquele mesmo dia, Xavier recebeu
uma ligação da capital informando que conseguiram digitais no bilhete; no
entanto, não haviam encontrado digitais iguais no cadastro da polícia. Outros
detalhes encontrados pelos peritos foram leves sombras quase que imperceptíveis
de palavras em inglês, provavelmente por aquele papel ter sido arrancado de
alguma contracapa de livro escrito neste idioma. Dessas palavras, a perícia
conseguiu identificar apenas três: death, fear e end. O que chamou a atenção do
delegado, não só por seus significados, mas por alguém ler livros em inglês
naquela pequena cidade. Xavier não conhecia ninguém que dominasse esse idioma
por ali.
O resultado da análise pericial
deixou o delegado bastante pensativo e, após várias investigações, ficou
sabendo de um casal americano que morava em um sítio à margem do rio, descendo
cerca de sete quilômetros. Esse casal se mudara para lá há mais de duas décadas
e vinham sempre na cidade, mas se isolaram depois que seus dois filhos
morreram. Desde então, só alguns pescadores relatam ter os visto. Xavier não
pensou duas vezes, pegou um barco emprestado e desceu o rio em busca do casal.
Já no fim da tarde, avistou a
cabana mencionada pelos moradores. Estava bem velha, com sinais de abandono,
mas ele sabia que havia alguém morando ali. Havia uma canoa ancorada no
barranco, roupas estendidas no varal e alguns porcos nas proximidades da
cabana. Quando se aproximou, avistou uma senhora sentada numa varanda
consertando uma velha rede de pesca. Numa caixa, ao seu lado, muitas linhas e
anzóis de diversos tamanhos.
– Há muito tempo não recebo
visitas. Veio rir da minha desgraça também?
Disse com o forte sotaque
americano.
– Não, senhora. Chamo-me Xavier,
sou delegado e vim conversar com seu esposo. Ele se encontra?
– Se veio falar com o Charlie
então devia ter vindo há cinco anos. Meu marido está morto, delegado.
– Sinto muito, não soube do
falecimento. Então vive somente a senhora aqui?
Xavier reparou numa pequena
estante de livros empoeirados no interior da cabana. Alguns, inclusive, com títulos
em inglês.
– Não. Tenho a companhia dos meus
meninos – fez um movimento acenando para os porcos – e da minha arte. Sou uma mulher velha, delegado, vivo da pesca
e da criação de porcos. Não creio que posso ajudá-lo.
– Como a senhora se chama?
– Dorothy McButch.
– Muito bem Dona Dorothy, se me
permite só mais uma pergunta: Têm notado algo estranho nessas últimas semanas
por aqui? Pessoas estranhas, talvez?
– Delegado, desde que perdi meus
filhos nada mais é normal para mim. Os dias são longos e cheios de dor. Vivo
nessa terra estranha, todos são estranhos.
Xavier pensou em pedir autorização
para entrar na casa, mas achou ser desnecessário, afinal, o que poderia uma
velha solitária esconder? Ela não tinha condições físicas suficientes para que
a enquadrassem como suspeita. Após despedir-se, o delegado voltou à cidade. Já
era noite.
Na madrugada seguinte, Xavier recebeu
outra ligação.
– Dr. Xavier?
– Sim, quem fala?
– É o soldado Leonardo, senhor.
Desculpe ligar a essa hora, mas temos um problemão aqui!
– O Pescador?
– Sim, senhor, acabaram de
encontrar a filha da Dona Nazaré lá na ponte, como os outros. Já desloquei
alguns homens nossos para lá. Acho bom o senhor ir também.
– Já estou indo. Obrigado por me
informar.
Dessa vez o assassino foi bem mais
ousado. Quando o delegado Xavier chegou ao local onde se encontrava a vítima –
em uma das pilastras de sustentação da ponte que atravessava o rio –, já
estavam lá alguns policiais e um pequeno barco com três homens que pescavam por
ali e acabaram encontrando a garota. Na pilastra, escrito com o sangue da
própria vítima, eles liam:
A este povo deixo minha
obra prima. Gerações passarão e se lembrarão do dia em que anzóis romperam a
carne de seus herdeiros.
Após aquele episódio, o governador
do estado enviou dezenas de policiais e investigadores para tentar descobrir a
identidade do Pescador, mas em vão.
Os assassinatos pararam, e com o tempo a rotina daquela cidade voltou ao
normal. Xavier continuou como delegado daquela cidade por mais dezoito anos,
quando se aposentou. Depois disso, comprou um sítio à beira do rio, onde passou
a viver com sua esposa. O delegado que assumiu seu cargo era bem mais jovem e
exercia exatamente o mesmo papel de Xavier, o de resolver as brigas nos bares e
entre familiares.
Seis verões depois, numa noite
bastante chuvosa, Xavier tinha acabado de chegar à sua casa, tomou seu banho,
jantou com sua esposa e se preparava para dormir quando ouviu os latidos de seus
cães. Não pode ser, pensou. Quando
saiu para verificar o que os incomodava tropeçou em um pacote. Novamente o
embrulho. As linhas. Os anzóis. O recado.
Esta cidade clama por minha arte,
tenha uma boa noite, Dr. Xavier.
Ele estava de volta.
O Pescador.
Suspense não faz meu estilo, mas gostei :)
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