A vida no orfanato se tornava pior a cada dia para
o menino de olhos vermelhos. Na primeira semana o quarto em que dormia lhe fora
tirado para dar lugar a uma nova criança que chegara durante uma tarde de
chuva. Foi, então, obrigado a se acomodar numa esteira de palha num canto úmido
do depósito de ferramentas. Os outros órfãos não o aceitaram como igual e o
agrediam sempre que tinham a oportunidade. Por esse motivo, Edgar preferia evitar
sair do depósito. A comida era servida apenas uma vez ao dia e geralmente era
uma mistura pastosa de sabor irreconhecível e um cheiro não muito agradável que
lhe dera enjoos nas primeiras semanas. Raramente via a severa Olga. Ela só se
relacionava com os internos quando chegavam, eram adotados ou em situações
específicas e, geralmente, eram três funcionários que estavam presentes no
orfanato: o zelador Mackenzy, responsável por fiscalizar se os internos estavam
cumprindo as regras do orfanato; o professor Felix, que lecionava aulas de Discurso e Aritmética aos sábados; e a
cozinheira Matilde, criadora daquela gororoba irreconhecível que era servida
aos internos.
Mackenzy era um carrasco sem igual. Homem baixo de
cabelos negros compridos e despenteados, bigode fino e torto e óculos
circulares dotados de lentes extremamente grossas que pareciam mais atrapalhar
que ajudar sua visão. Estava sempre andando pelos corredores à procura de
órfãos fora de seus quartos, tentando fugir ou descumprindo qualquer uma das
centenas de regras que Olga criara. Na mão direita, carregava sempre uma régua
de madeira de cerca de um metro, que usava para castigar com palmatórias ou açoites
nas pernas do infrator que fosse pego. Morava no orfanato há muitos anos,
raramente saía e apesar da aparência severa e violenta, o velho Mackenzy, como
todos sabiam, não passava de um pobre coitado que se curvava a qualquer olhar
de Olga, a diretora.
O professor Felix, no entanto, era jovem e de
aparência distinta. Vestia-se geralmente com ternos cinza ou preto e usava na cabeça
um chapéu típico das classes sociais mais elevadas de Santa Brígida. Usava um
cavanhaque sempre bem feito que moldurava o charuto que estava quase sempre
presente em sua boca. Portava-se da maneira mais elegante que Edgar já havia
conhecido e não era adepto de maus tratos com seus alunos, apesar de saber
impor a ordem e a disciplina através do seu discurso firme e rigoroso.
Matilde, a
cozinheira, era uma senhora tão gorda que mal cabia em suas roupas. Tinha
cabelos curtos e um nariz enorme. Geralmente ficava na cozinha preparando as refeições exóticas dos internos ou no
escritório da diretora, limpando e organizando incansavelmente sob gritos e
palavrões que lhe eram pronunciados a todo instante. Nunca dizia uma só palavra,
só ouvia e confirmava com movimentos de cabeça.
Edgar conhecia bem o professor Felix e sua maneira
de conduzir as aulas de Aritmética e Discurso, no entanto, nunca havia assistido
a uma aula sequer. Pelo menos não oficialmente. No primeiro sábado, quando
inocentemente entrou na sala de aula, fora escorraçado pelos outros órfãos. O
professor, assustado com sua primeira visão dos olhos vermelhos, não disse uma
só palavra, mas deixou transparecer em sua fisionomia que não queria aquele
estranho ser em suas aulas. Edgar, então, voltou para o depósito que era logo
ao lado na sala de aula e pôs-se a chorar, inconformado por não poder
participar daquelas aulas que lhe interessavam tanto.
No segundo sábado, o menino percebeu que era
possível ouvir o que o professor falava apenas encostando o ouvido na parede e
a partir daí decidiu ser o aluno invisível da turma de Discurso e Aritmética. Esperou a noite chegar e com a ponta de uma
lasca de madeira começou a perfurar a parede de pedra.
— Não é possível, preciso de algo mais duro e
pontiagudo — pensou.
Procurou então entre as ferramentas empilhadas nas
estantes do depósito e encontrou um prego grande que lhe serviria bem. Durante
quatro noites Edgar perfurou a parede cautelosamente, de modo que o zelador Mackenzy
não o pegasse infringindo aquela regra e conseguiu, no amanhecer da quarta
noite, abrir um pequeno orifício que lhe permitiria assistir as aulas sem ser
notado. Limpou a sujeira que havia feito e escondeu o buraco escorando um
tambor de cera na parede.
Todo o plano do garoto teria sido perfeito se não
fosse pelo azar que teve no dia seguinte. Mackenzy foi até o depósito pegar o
prego que havia guardado na caixa de ferramentas para consertar uma viga solta
que sustentava a caixa d’água e não o encontrou. Sabendo que o único que
entrava ali era o menino de olhos vermelhos, o zelador o abordou furioso,
perguntando-lhe o que ele tinha feito com o prego. Edgar, que havia imaginado
que ninguém sentiria falta daquele simples prego, não sabia o que responder e
acabou pagando um preço caro por isso. Mackenzy o castigou com duzentas palmatórias
e várias pauladas nas pernas e nas costelas que o fizeram gritar desesperadamente
de dor.
No fim do dia, Edgar estava moído e doloroso. Seus
olhos já não choravam mais. Não havia lágrimas. Sua carne, batida e marcada,
não lhe permitia levantar da esteira de palha estendida no chão, nem mesmo para
saciar a sede que lhe incomodava. A dor era imensa mesmo nos pequenos
movimentos e os gemidos constantes ecoavam entre as quatro paredes de pedra do
depósito que fora trancado por fora.
Em seus pensamentos, a doce lembrança das tardes
que passava com seu pai no sítio onde fora criado. As estórias de cavaleiros e
seres encantados que Júlio sempre contava nas noites frias aquecidas à beira da
lareira, tomando chá mate e comendo biscoitos de trigo. Lembrou-se também das
manhãs de verão em que acordavam bem cedo para ordenhar as cabras e colocar o
leite para coagular, para que noutro dia tivessem queijos frescos para vender.
Eram tantas lembranças. Olhou então para a estante cheia de velhas ferramentas
enferrujadas, empilhadas sem nenhuma ordem, e enxergou seu livro ao lado de um
serrote desdentado. A vontade de pegá-lo para folhear algumas páginas era
imensa, mas a dor não permitiu que o fizesse.
♠ ♠ ♠
Foram três dias e três noites, trancafiado naquele
cômodo úmido e escuro, sem comer e beber, até que seu corpo permitiu que
levantasse e andasse até a porta de ferro que se encontrava trancada.
Sem forças para chamar por alguém, Edgar bateu três
vezes na porta e voltou a deitar. Não demorou muito para que o zelador
chegasse.
— Ora, ora.— disse Mackenzy ao entrar — Se não é o
pirralho dos olhos vermelhos que gosta de mexer nas minhas ferramentas. Espero,
para a sua sorte, que nada mais tenha sumido.
— Água, por favor. — suplicou o garoto num tom de
voz quase inaudível por tamanha fraqueza.
— Hum. Vou pedir para que a senhora Matilde traga
água e sua refeição de hoje. Mas que fique bem claro: a próxima vez que mexer
nas minhas ferramentas a punição será muito pior.
Edgar balançou com a cabeça confirmando que havia
entendido o recado e o zelador saiu apressado deixando bater a porta atrás de
si.
Por mais três dias o menino permaneceu no depósito,
retomando lentamente suas forças. No quarto dia, o zelador foi buscá-lo e o
colocou para trabalhar na lavanderia junto com outras nove crianças. A partir
dali, sua vida se resumiu a trabalhar exaustivamente durante a semana, assistir
anonimamente as aulas do professor Felix aos sábados e descansar aos domingos.
Dia após dia, a mesma rotina.
Três anos se passaram e, com o tempo e as
observações diárias, Edgar perdia cada vez mais a esperança de um dia conseguir
sair dali. O que era para ser um lar tornou-se uma prisão e o que era para ser
uma vida tornou-se o inferno. Para onde quer que olhasse, o menino via pessoas
inescrupulosas, gananciosas e perversas, até mesmo entre as crianças, ora já corrompidas
pela violência e a dureza de suas vidas. Era evidente que não haveria um bom
futuro para ele ali.
Vez ou outra chegavam alguns casais à procura de
crianças para adotar. A maioria procurava por recém-nascidos e quando não os
havia, o zelador passava nos quartos chamando órfão por órfão para a devida
apresentação. Poucos eram escolhidos. Muito poucos. E Edgar, coitado, nem
sequer era chamado para apresentar-se, pois Olga tinha medo que o menino
pudesse assustar e afugentar os casais interessados, gerando na cidade uma má
fama ao orfanato.
Certo dia, um garoto estranho chegou ao orfanato. Tinha
a pele morena e ressecada, era magro, de cabelos crespos, aura extraordinariamente
pura e olhos estranhamente brancos que logo chamaram a atenção de Edgar. O zelador o acompanhou até um banco no pátio e
disse a ele que ficasse lá até que um quarto fosse conseguido, saindo logo em
seguida. Os outros órfãos estavam todos enfileirados no corredor que dava
acesso à sala da diretora para uma apresentação a um casal de estrangeiros que
procuravam uma criança e, por isso, o pátio estava completamente vazio, a não
ser pelo novato sentado no banco de madeira.
— Ele deve ser como eu — disse Edgar a si mesmo,
imaginando que aqueles olhos brancos pudessem ter alguma característica
relacionada aos seus.
O garoto moreno permaneceu sentado por mais de uma
hora e nem sequer cogitou sair do banco em que se encontrava. Edgar,
impulsionado pela curiosidade, tomou coragem e correu até o novato para indagar
sobre aqueles olhos. Quando se aproximou, achou logo estranho o fato do garoto
não reparar em sua presença. Postou-se de frente para o menino de olhos
brancos, mas deixando-se esconder atrás de uma coluna para que o zelador não o
visse ali.
— Quem está aí? — perguntou o garoto sentado no
banco.
— Oi, eu me chamo Edgar. Qual é o seu nome?
— Edgar? Hum. Sou Osílis Aldebaran, mas pode me
chamar apenas de Osílis. Você também é órfão?
— Sou sim. Há três anos.
— Hum. Sinto muito. Sou órfão desde que nasci, mas
o orfanato onde eu morava, em Motherland, foi incendiado e me trouxeram para
cá.
— Nossa! E foram te trazer justo para cá?
— Sim. Por quê?
— Por nada. — disse Edgar não querendo desanimar o
novato em seu primeiro dia. — Osílis, não pude deixar de notar seus olhos e
fiquei muito curioso para saber o porquê deles serem assim.
— Não é evidente?
— Evidente? Como assim?
— Sou cego, ora.
— Cego? O
que é isso? — perguntou cheio de curiosidade a respeito da tal palavra por ele
desconhecida.
— Você não sab...
Mas antes que o menino pudesse explicar, Edgar
sentiu um forte puxão que o fez saltar de trás da coluna em que se escondia.
— Te peguei, criatura do inferno! — gritou o
zelador Mackenzy agarrando Edgar pelo braço — O que está fazendo fora do seu quarto, moleque?!
— Eu posso explicar, senhor.
— Guarde suas explicações para si! — retrucou o
zelador — Eu poderia moer você novamente com a minha régua, mas vou lhe poupar
dessa vez.
Edgar estranhou a generosidade do velho Mackenzy e
sentiu-se aliviado em saber que não passaria pela mesma experiência que vivera
há três anos.
— Não encontrei quarto para o ceguinho e ele vai
ficar com você lá no depósito. Leve-o e arrume um lugar para ele dormir. —
explicou o zelador já soltando o braço de Edgar.
— Sim senhor.
— E não demorem! — disse o velho já se afastando.
Osílis ficou sem entender o que estava acontecendo
e Edgar se virou e acenou para que o menino o seguisse. Em vão. Osílis continuava
sentado como se não tivesse entendido o movimento que ele fez com a mão.
— Venha, colega! Se o zelador voltar e ainda
estivermos aqui ele vai surrar nós dois.
— Mas eu já disse que sou cego, Edgar! Não enxergo
absolutamente nada. Você pode me ajudar?
“Não enxerga nada?!”, pensava Edgar, ainda tentando entender o que isso
significava. A visão sempre fora algo tão natural em sua vida que em nenhum
momento ele chegou a pensar que se era possível não tê-la. Por um breve momento
ficou pensativo, levou as mãos ao rosto e cobriu completamente seus olhos de
modo que pudesse ter uma singela noção do que seria a cegueira. “É horrível!”, concluiu. Ainda mais para
ele que era acostumado a enxergar mais do que qualquer outra pessoa. Abaixou
então as mãos e aproximou-se de Osílis.
— Claro que posso te ajudar, meu amigo. Serei seus olhos
enquanto estiver por perto. — respondeu enquanto ajudava seu novo colega de quarto a se orientar.
Já no depósito, Edgar estendeu mais uma esteira no
chão e se sentaram, iniciando uma longa conversa sobre suas vidas, ambas muito
sofridas. Osílis fora abandonado pelos pais na porta de uma igreja ainda recém-nascido,
simplesmente porque perceberam que ele havia nascido cego. As freiras o
encontraram e levaram-no para o orfanato central, em Motherland. Lá, fora
criado em um ambiente saudável, embora sempre sendo vítima do preconceito por
causa de sua deficiência. Edgar, por outro lado, teve a sorte de ter o pai consigo
durante sua infância e de seus olhos enxergarem até melhor que das demais pessoas
que ele já conheceu, no entanto, a intensidade da cor vermelha de seus olhos
sempre causaram horror nas pessoas e isso também era motivo de grande
preconceito.
Osílis ficou surpreso em saber que Edgar também era
diferente de alguma maneira e, mesmo não tendo uma noção exata da fisionomia do
garoto de olhos vermelhos, ficou feliz por saber que alguém com problemas
semelhantes aos dele era, agora, seu amigo.
— Sabe, Edgar. Espero que possamos ser bons amigos.
— Seremos. Na verdade, acho que você é o meu primeiro
amigo, por isso hoje vou ler um trecho do meu livro em voz alta, para que você
acompanhe a estória junto comigo. Pode ser?
— Claro.
E, à luz trêmula de uma lamparina, Edgar abriu uma
página aleatória e ambos mergulharam por mais de uma hora no universo de O homem que tudo sabia, até que seus
olhos, cegos e superdotados, foram seduzidos pelo sono da noite e as fantasias
dos sonhos que viriam.
Leia os capítulos anteriores:
<<<<< Capítulo 5
<<<< Capítulo 4
<<< Capítulo 3
<< Capítulo 2
< Capítulo 1
Está muito interessante!
ResponderExcluircoitado do Edgar, quando somos diferentes, pagamos um preço muito alto na sociedade e somos mesmo excluídos por todos ou quase todos!
As diferenças existem para serem respeitadas!
Edgar sofre muito e podemos imaginar também a questão dos orfanatos, como tratam as crianças!Realmente viver em um orfanato ,não deve ser nada fácil!
que bom ter encontrado um amigo especial como ele!
http://www.elianedelacerda.com
Cada vez ficando melhor essa estória.
ResponderExcluirParabéns!
Maravilhoso amigo Denis,
ResponderExcluirmuitos exemplos e reflexões podemos tirar desse conto especial...
E vamos lá amigo poeta, vamos fazer acontecer!!
Parabéns querido! :)
A amizade surge nos momentos mais difíceis.
ResponderExcluirTá empolgante, sofrida, mas empolgante.
Que bom que ele não está mais só :)
ResponderExcluirMas é uma pena que uma outra criança, como tantas que infelizmente existem, experimentem tão cedo e de maneira tão cruel a vida.
Ansiosa pelo próximo capítulo