O MENINO DOS OLHOS VERMELHOS - CAPÍTULO 6: Olhos Brancos

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A vida no orfanato se tornava pior a cada dia para o menino de olhos vermelhos. Na primeira semana o quarto em que dormia lhe fora tirado para dar lugar a uma nova criança que chegara durante uma tarde de chuva. Foi, então, obrigado a se acomodar numa esteira de palha num canto úmido do depósito de ferramentas. Os outros órfãos não o aceitaram como igual e o agrediam sempre que tinham a oportunidade. Por esse motivo, Edgar preferia evitar sair do depósito. A comida era servida apenas uma vez ao dia e geralmente era uma mistura pastosa de sabor irreconhecível e um cheiro não muito agradável que lhe dera enjoos nas primeiras semanas. Raramente via a severa Olga. Ela só se relacionava com os internos quando chegavam, eram adotados ou em situações específicas e, geralmente, eram três funcionários que estavam presentes no orfanato: o zelador Mackenzy, responsável por fiscalizar se os internos estavam cumprindo as regras do orfanato; o professor Felix, que lecionava aulas de Discurso e Aritmética aos sábados; e a cozinheira Matilde, criadora daquela gororoba irreconhecível que era servida aos internos.
Mackenzy era um carrasco sem igual. Homem baixo de cabelos negros compridos e despenteados, bigode fino e torto e óculos circulares dotados de lentes extremamente grossas que pareciam mais atrapalhar que ajudar sua visão. Estava sempre andando pelos corredores à procura de órfãos fora de seus quartos, tentando fugir ou descumprindo qualquer uma das centenas de regras que Olga criara. Na mão direita, carregava sempre uma régua de madeira de cerca de um metro, que usava para castigar com palmatórias ou açoites nas pernas do infrator que fosse pego. Morava no orfanato há muitos anos, raramente saía e apesar da aparência severa e violenta, o velho Mackenzy, como todos sabiam, não passava de um pobre coitado que se curvava a qualquer olhar de Olga, a diretora.
O professor Felix, no entanto, era jovem e de aparência distinta. Vestia-se geralmente com ternos cinza ou preto e usava na cabeça um chapéu típico das classes sociais mais elevadas de Santa Brígida. Usava um cavanhaque sempre bem feito que moldurava o charuto que estava quase sempre presente em sua boca. Portava-se da maneira mais elegante que Edgar já havia conhecido e não era adepto de maus tratos com seus alunos, apesar de saber impor a ordem e a disciplina através do seu discurso firme e rigoroso.
 Matilde, a cozinheira, era uma senhora tão gorda que mal cabia em suas roupas. Tinha cabelos curtos e um nariz enorme. Geralmente ficava na cozinha preparando as refeições exóticas dos internos ou no escritório da diretora, limpando e organizando incansavelmente sob gritos e palavrões que lhe eram pronunciados a todo instante. Nunca dizia uma só palavra, só ouvia e confirmava com movimentos de cabeça.
Edgar conhecia bem o professor Felix e sua maneira de conduzir as aulas de Aritmética e Discurso, no entanto, nunca havia assistido a uma aula sequer. Pelo menos não oficialmente. No primeiro sábado, quando inocentemente entrou na sala de aula, fora escorraçado pelos outros órfãos. O professor, assustado com sua primeira visão dos olhos vermelhos, não disse uma só palavra, mas deixou transparecer em sua fisionomia que não queria aquele estranho ser em suas aulas. Edgar, então, voltou para o depósito que era logo ao lado na sala de aula e pôs-se a chorar, inconformado por não poder participar daquelas aulas que lhe interessavam tanto.
No segundo sábado, o menino percebeu que era possível ouvir o que o professor falava apenas encostando o ouvido na parede e a partir daí decidiu ser o aluno invisível da turma de Discurso e Aritmética. Esperou a noite chegar e com a ponta de uma lasca de madeira começou a perfurar a parede de pedra.

— Não é possível, preciso de algo mais duro e pontiagudo — pensou.

Procurou então entre as ferramentas empilhadas nas estantes do depósito e encontrou um prego grande que lhe serviria bem. Durante quatro noites Edgar perfurou a parede cautelosamente, de modo que o zelador Mackenzy não o pegasse infringindo aquela regra e conseguiu, no amanhecer da quarta noite, abrir um pequeno orifício que lhe permitiria assistir as aulas sem ser notado. Limpou a sujeira que havia feito e escondeu o buraco escorando um tambor de cera na parede.
Todo o plano do garoto teria sido perfeito se não fosse pelo azar que teve no dia seguinte. Mackenzy foi até o depósito pegar o prego que havia guardado na caixa de ferramentas para consertar uma viga solta que sustentava a caixa d’água e não o encontrou. Sabendo que o único que entrava ali era o menino de olhos vermelhos, o zelador o abordou furioso, perguntando-lhe o que ele tinha feito com o prego. Edgar, que havia imaginado que ninguém sentiria falta daquele simples prego, não sabia o que responder e acabou pagando um preço caro por isso. Mackenzy o castigou com duzentas palmatórias e várias pauladas nas pernas e nas costelas que o fizeram gritar desesperadamente de dor.
No fim do dia, Edgar estava moído e doloroso. Seus olhos já não choravam mais. Não havia lágrimas. Sua carne, batida e marcada, não lhe permitia levantar da esteira de palha estendida no chão, nem mesmo para saciar a sede que lhe incomodava. A dor era imensa mesmo nos pequenos movimentos e os gemidos constantes ecoavam entre as quatro paredes de pedra do depósito que fora trancado por fora.
Em seus pensamentos, a doce lembrança das tardes que passava com seu pai no sítio onde fora criado. As estórias de cavaleiros e seres encantados que Júlio sempre contava nas noites frias aquecidas à beira da lareira, tomando chá mate e comendo biscoitos de trigo. Lembrou-se também das manhãs de verão em que acordavam bem cedo para ordenhar as cabras e colocar o leite para coagular, para que noutro dia tivessem queijos frescos para vender. Eram tantas lembranças. Olhou então para a estante cheia de velhas ferramentas enferrujadas, empilhadas sem nenhuma ordem, e enxergou seu livro ao lado de um serrote desdentado. A vontade de pegá-lo para folhear algumas páginas era imensa, mas a dor não permitiu que o fizesse.

♠ ♠ ♠

Foram três dias e três noites, trancafiado naquele cômodo úmido e escuro, sem comer e beber, até que seu corpo permitiu que levantasse e andasse até a porta de ferro que se encontrava trancada.
Sem forças para chamar por alguém, Edgar bateu três vezes na porta e voltou a deitar. Não demorou muito para que o zelador chegasse.

— Ora, ora.— disse Mackenzy ao entrar — Se não é o pirralho dos olhos vermelhos que gosta de mexer nas minhas ferramentas. Espero, para a sua sorte, que nada mais tenha sumido.

— Água, por favor. — suplicou o garoto num tom de voz quase inaudível por tamanha fraqueza.
— Hum. Vou pedir para que a senhora Matilde traga água e sua refeição de hoje. Mas que fique bem claro: a próxima vez que mexer nas minhas ferramentas a punição será muito pior.

Edgar balançou com a cabeça confirmando que havia entendido o recado e o zelador saiu apressado deixando bater a porta atrás de si.
Por mais três dias o menino permaneceu no depósito, retomando lentamente suas forças. No quarto dia, o zelador foi buscá-lo e o colocou para trabalhar na lavanderia junto com outras nove crianças. A partir dali, sua vida se resumiu a trabalhar exaustivamente durante a semana, assistir anonimamente as aulas do professor Felix aos sábados e descansar aos domingos. Dia após dia, a mesma rotina.
Três anos se passaram e, com o tempo e as observações diárias, Edgar perdia cada vez mais a esperança de um dia conseguir sair dali. O que era para ser um lar tornou-se uma prisão e o que era para ser uma vida tornou-se o inferno. Para onde quer que olhasse, o menino via pessoas inescrupulosas, gananciosas e perversas, até mesmo entre as crianças, ora já corrompidas pela violência e a dureza de suas vidas. Era evidente que não haveria um bom futuro para ele ali.
Vez ou outra chegavam alguns casais à procura de crianças para adotar. A maioria procurava por recém-nascidos e quando não os havia, o zelador passava nos quartos chamando órfão por órfão para a devida apresentação. Poucos eram escolhidos. Muito poucos. E Edgar, coitado, nem sequer era chamado para apresentar-se, pois Olga tinha medo que o menino pudesse assustar e afugentar os casais interessados, gerando na cidade uma má fama ao orfanato.
Certo dia, um garoto estranho chegou ao orfanato. Tinha a pele morena e ressecada, era magro, de cabelos crespos, aura extraordinariamente pura e olhos estranhamente brancos que logo chamaram a atenção de Edgar.  O zelador o acompanhou até um banco no pátio e disse a ele que ficasse lá até que um quarto fosse conseguido, saindo logo em seguida. Os outros órfãos estavam todos enfileirados no corredor que dava acesso à sala da diretora para uma apresentação a um casal de estrangeiros que procuravam uma criança e, por isso, o pátio estava completamente vazio, a não ser pelo novato sentado no banco de madeira.

— Ele deve ser como eu — disse Edgar a si mesmo, imaginando que aqueles olhos brancos pudessem ter alguma característica relacionada aos seus.

O garoto moreno permaneceu sentado por mais de uma hora e nem sequer cogitou sair do banco em que se encontrava. Edgar, impulsionado pela curiosidade, tomou coragem e correu até o novato para indagar sobre aqueles olhos. Quando se aproximou, achou logo estranho o fato do garoto não reparar em sua presença. Postou-se de frente para o menino de olhos brancos, mas deixando-se esconder atrás de uma coluna para que o zelador não o visse ali.

— Quem está aí? — perguntou o garoto sentado no banco.
— Oi, eu me chamo Edgar. Qual é o seu nome?
— Edgar? Hum. Sou Osílis Aldebaran, mas pode me chamar apenas de Osílis. Você também é órfão?
— Sou sim. Há três anos.
— Hum. Sinto muito. Sou órfão desde que nasci, mas o orfanato onde eu morava, em Motherland, foi incendiado e me trouxeram para cá.
— Nossa! E foram te trazer justo para cá?
— Sim. Por quê?
— Por nada. — disse Edgar não querendo desanimar o novato em seu primeiro dia. — Osílis, não pude deixar de notar seus olhos e fiquei muito curioso para saber o porquê deles serem assim.
— Não é evidente?
— Evidente? Como assim?
— Sou cego, ora.
Cego? O que é isso? — perguntou cheio de curiosidade a respeito da tal palavra por ele desconhecida.
— Você não sab...

Mas antes que o menino pudesse explicar, Edgar sentiu um forte puxão que o fez saltar de trás da coluna em que se escondia.

— Te peguei, criatura do inferno! — gritou o zelador Mackenzy agarrando Edgar pelo braço — O que está fazendo fora do seu quarto, moleque?!
— Eu posso explicar, senhor.
— Guarde suas explicações para si! — retrucou o zelador — Eu poderia moer você novamente com a minha régua, mas vou lhe poupar dessa vez.

Edgar estranhou a generosidade do velho Mackenzy e sentiu-se aliviado em saber que não passaria pela mesma experiência que vivera há três anos.

— Não encontrei quarto para o ceguinho e ele vai ficar com você lá no depósito. Leve-o e arrume um lugar para ele dormir. — explicou o zelador já soltando o braço de Edgar.
— Sim senhor.
— E não demorem! — disse o velho já se afastando.

Osílis ficou sem entender o que estava acontecendo e Edgar se virou e acenou para que o menino o seguisse. Em vão. Osílis continuava sentado como se não tivesse entendido o movimento que ele fez com a mão.

— Venha, colega! Se o zelador voltar e ainda estivermos aqui ele vai surrar nós dois.
— Mas eu já disse que sou cego, Edgar! Não enxergo absolutamente nada. Você pode me ajudar?

“Não enxerga nada?!”, pensava Edgar, ainda tentando entender o que isso significava. A visão sempre fora algo tão natural em sua vida que em nenhum momento ele chegou a pensar que se era possível não tê-la. Por um breve momento ficou pensativo, levou as mãos ao rosto e cobriu completamente seus olhos de modo que pudesse ter uma singela noção do que seria a cegueira. “É horrível!”, concluiu. Ainda mais para ele que era acostumado a enxergar mais do que qualquer outra pessoa. Abaixou então as mãos e aproximou-se de Osílis.

— Claro que posso te ajudar, meu amigo. Serei seus olhos enquanto estiver por perto. — respondeu enquanto ajudava seu novo colega de quarto a se orientar.

Já no depósito, Edgar estendeu mais uma esteira no chão e se sentaram, iniciando uma longa conversa sobre suas vidas, ambas muito sofridas. Osílis fora abandonado pelos pais na porta de uma igreja ainda recém-nascido, simplesmente porque perceberam que ele havia nascido cego. As freiras o encontraram e levaram-no para o orfanato central, em Motherland. Lá, fora criado em um ambiente saudável, embora sempre sendo vítima do preconceito por causa de sua deficiência. Edgar, por outro lado, teve a sorte de ter o pai consigo durante sua infância e de seus olhos enxergarem até melhor que das demais pessoas que ele já conheceu, no entanto, a intensidade da cor vermelha de seus olhos sempre causaram horror nas pessoas e isso também era motivo de grande preconceito.
Osílis ficou surpreso em saber que Edgar também era diferente de alguma maneira e, mesmo não tendo uma noção exata da fisionomia do garoto de olhos vermelhos, ficou feliz por saber que alguém com problemas semelhantes aos dele era, agora, seu amigo.

— Sabe, Edgar. Espero que possamos ser bons amigos.
— Seremos. Na verdade, acho que você é o meu primeiro amigo, por isso hoje vou ler um trecho do meu livro em voz alta, para que você acompanhe a estória junto comigo. Pode ser?
— Claro.


E, à luz trêmula de uma lamparina, Edgar abriu uma página aleatória e ambos mergulharam por mais de uma hora no universo de O homem que tudo sabia, até que seus olhos, cegos e superdotados, foram seduzidos pelo sono da noite e as fantasias dos sonhos que viriam.

Girotto Brito

Escritor

Poeta e contista, autor do livro "Os três lados da moeda: vida e morte em poesia" e colaborador em diversas antologias de contos.

5 comentários:

  1. Está muito interessante!
    coitado do Edgar, quando somos diferentes, pagamos um preço muito alto na sociedade e somos mesmo excluídos por todos ou quase todos!
    As diferenças existem para serem respeitadas!
    Edgar sofre muito e podemos imaginar também a questão dos orfanatos, como tratam as crianças!Realmente viver em um orfanato ,não deve ser nada fácil!
    que bom ter encontrado um amigo especial como ele!
    http://www.elianedelacerda.com

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  2. Cada vez ficando melhor essa estória.
    Parabéns!

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  3. Maravilhoso amigo Denis,
    muitos exemplos e reflexões podemos tirar desse conto especial...
    E vamos lá amigo poeta, vamos fazer acontecer!!

    Parabéns querido! :)

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  4. A amizade surge nos momentos mais difíceis.
    Tá empolgante, sofrida, mas empolgante.

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  5. Que bom que ele não está mais só :)
    Mas é uma pena que uma outra criança, como tantas que infelizmente existem, experimentem tão cedo e de maneira tão cruel a vida.
    Ansiosa pelo próximo capítulo

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