O frio torturava cada centímetro do corpo do garoto
e só o que lhe confortava era a lua cheia que iluminava seu caminho sem rumo
por entre vastas plantações de milho. Era cerca de uma hora da madrugada e
Edgar já estava bem longe das terras dos Martinez. Se havia feito a escolha
certa, fugindo daquele jeito, isso não sabia, mas o medo da reação daquelas
pessoas foi tão intenso que naquele momento o menino não conseguiu pensar em
outra coisa. Pegou seu livro e um casaco de lã, que provavelmente pertencia à
Meddilyn, e pulou a janela sem ao menos olhar para trás.
Eles poderiam ter me adotado — pensava o garoto
enquanto caminhava vagarosamente pelo milharal — mas também poderiam me matar,
como tentou fazer minha mãe.
Edgar já conhecia seu passado. Júlio, algumas
semanas antes de sua morte, chamou seu filho no quarto e contou-lhe tudo,
inclusive que sua mãe havia tentado matá-lo e o que os aldeões de Santa Brígida
fizeram com ela. Foi um choque para ele saber de tudo aquilo, não por ter perdido
a mãe, pois sequer sabia o que era ter uma mãe, mas por saber que ele poderia ter
morrido simplesmente porque nasceu com os olhos vermelhos. Que mal há nisso? — pensou.
O casaco de Meddilyn não era suficiente para manter
seu corpo aquecido, a fome já lhe assolava e o cansaço fazia-lhe vacilar as
pernas, mas Edgar não parou. Seguiu andando por toda a noite. Atravessou o
milharal, depois uma plantação de soja, uma pequena vila e mais adiante um
pasto onde vacas e cabras repousavam sob uma enorme mangueira. Toda aquela
região era formada por morros e vales maravilhosos que a escuridão não o
permitia contemplar.
Faltava menos de uma hora para o nascer do sol e
Edgar já não aguentava mais. Chegara ao seu limite. De repente, sua visão começou
a escurecer e suas pernas fraquejaram. Apoiou-se na cerca de madeira e tentou
recuperar o domínio sobre seu corpo. Ao longe, uma pequena capela que se
mostrava à beira da estrada foi a última coisa que o menino conseguiu enxergar
antes de desmaiar.
Estava escuro; dezenas de pessoas enraivecidas com
tochas acesas nas mãos; uma casa na colina; muitas cabras correndo; o fogo queimando
a casa; entrou no quarto em chamas; duas camas, seu pai em uma e uma mulher em
outra. Meu filho! — ela dizia; duas parteiras passam correndo; cabras passam
correndo; seu pai agoniza na cama ao lado; as chamas se aproximam; seus pés
estão presos; desespero; dor; agonia; não consegue se mover; a mulher grita por
ele enquanto o fogo a queima; seu pai senta-se na cama: Adeus, Edgar!
Abriu os olhos, assustado. Fora um pesadelo, apenas
um pesadelo — falou a si mesmo. Passou a mão no rosto suado e ainda tentando
livrar-se da sonolência reparou que estava num lugar totalmente desconhecido.
Um quanto pequeno e úmido, com paredes de pedra, uma cama dura e uma mesinha de
canto aonde se encontrava seu livro. Não havia sequer uma janela. Suas roupas
haviam sido trocadas por um macacão azul, feito de um tecido grosso extremamente
desconfortável. Levantou-se e tentou sair para saber onde estava, mas o quarto
estava trancado por fora. Estou preso — pensou o menino ainda confuso.
Não sabia onde estava e nem como fora parar ali,
mas de certa forma sentia-se aliviado por ter escapado do frio que fazia lá
fora. Pensou em chamar por alguém e pedir comida, mas, receoso, preferiu sentar-se
na cama e aguardar.
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— O encontrei na estrada, próximo à minha capela, e
o trouxe, pois sei que vocês cuidam de menores desamparados.
— Não se preocupe, Frei Alberto. O senhor fez muito
bem. O Orfanato São Cristóvão é a melhor instituição de amparo a menores desabrigados
dessa região — disse a diretora do orfanato ao sacerdote.
— Não sei de onde veio o garoto — acrescentou o
Frei — mas provavelmente desmaiou de fome e cansaço, coitado.
— Já o agasalhamos e daqui a pouco irei levar sua refeição.
Só estou deixando que descanse um pouco mais. Assim que ele acordar irei pessoalmente
interrogá-lo para saber seu nome, se tem família e de onde veio. Por hora, peço
para que fique tranquilo, o garoto está em boas mãos.
Frei Alberto saía para ordenar algumas vacas quando
encontrou Edgar caído na beira da estrada. Sem saber o que fazer, colocou-o
numa carroça puxada por um boi e o levou até Santa Brígida, a pouco mais de
seis quilômetros ao sul de sua capela. O Orfanato São Cristóvão foi o primeiro
lugar que lhe veio à cabeça para pedir por socorro, e à princípio, fora uma boa
escolha, pois assim que chegou duas pessoas que trabalhavam lá o atenderam
rapidamente e trataram de oferecer os cuidados necessários ao garoto. No
entanto, depois de passar toda aquela euforia da chegada, Alberto já não olhava
com a mesma confiança para as dependências do orfanato. O prédio era grande, devia
ter mais de trinta quartos e mais algumas salas usadas para ensino e refeitório,
tudo cercado por um muro alto de pedra. Em alguns corredores que passou, Frei
Alberto pôde ver rapidamente algumas crianças escondidas atrás de colunas e
janelas, como se estivessem com medo de alguma coisa e embora a elegante Olga
Bulamarque tentasse convencê-lo que ali era o melhor lugar para o menino, alguma
coisa parecia lhe dizer o contrário.
— O senhor já está liberado para ir, Frei.
Enviaremos notícias sobre o garoto o mais breve possível e o senhor pode visitá-lo
quando quiser — disse Olga, já encaminhando o sacerdote para a porta de saída.
— Deus esteja com você, minha senhora. Logo virei
visitar o menino, me informe se houver qualquer problema com ele — disse Frei Alberto
ainda desconfiado da credibilidade daquela instituição.
Olga Bulamarque mal esperou que o Frei dobrasse a
esquina e encaminhou-se a passadas rápidas para o quarto do recém-chegado.
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Edgar já não aguentava mais. Nunca havia sentido
tanta fome em sua vida. Parecia-lhe que algo corroía suas entranhas. Sem pensar
nas consequências ou na reação de quem o visse, começou a bater na porta e chamar
por qualquer pessoa que pudesse ajudá-lo. Três batidas foram o suficiente. A
porta se abriu e Edgar fechou rapidamente seus olhos, ainda conseguindo ver
brevemente a fisionomia da mulher alta e magra, com cabelos grisalhos e olhos
fundos cravados na face. Entretanto, o que mais apavorou o garoto foi o que o
dom de seus olhos lhe permitiu ver: uma aura rubro-negra, que denunciava a
personalidade perturbadora daquela mulher, sua falta de caráter e os tantos erros
já cometidos por ela. Algo que Edgar jamais havia visto em qualquer outra pessoa.
— Ora, ora! Vejo que nosso novo hóspede já acordou —
disse Olga num tom de voz extremamente sarcástico — Eu me chamo Olga Bulamarque
e sou a diretora desse orfanato. A partir de hoje você morará aqui e obedecerá
as regras dessa instituição.
Edgar se manteve em pé, parado de frente para a
diretora que o fitou dos pés à cabeça durante alguns segundos. Ele estava nervoso
e amedrontado, e mesmo querendo pedir a ela um pouco de comida, preferiu
calar-se.
— Qual é o seu nome, garoto?
— Edgar Salazar, senhora — respondeu num tom de voz
quase inaudível.
— Olhe para mim quando fala, menino!
O suor começou a escorrer em seu rosto e o medo fazia
seus músculos tremerem.
— Olhe para mim quando fala, menino! — repetiu a
diretora já num tom de voz bem mais severo.
Edgar buscou em si toda a coragem que tinha e já
se preparando para a pior das reações, abriu cautelosamente seus olhos. A diretora,
no susto, soltou um grito e deu alguns passos para traz, tropeçando em seus próprios
pés e caindo sentada no corredor. Ele ainda pensou em ajudar a senhora, mas
suas pernas estavam paralisadas de medo e continuou imóvel, assistindo a mulher
se levantar vagarosamente.
— Santo Deus, o que é você?! — disse já se
aproximando do menino.
Olga chegou bem perto de Edgar e começou a examinar
seus olhos.
— Que ironia, seu demoniozinho. Ter sido trazido aqui
por um homem de Deus.
— Não sou um demônio, senh...
Antes que Edgar pudesse terminar de falar a
diretora o atingiu com um violento golpe no rosto que o fez cair.
— Não me dirija a palavra, criatura! A menos que eu
peça. — advertiu Olga severamente — Não sei de onde você veio e nem tenho
interesse em saber. Aqui nesse orfanato todos seguem as regras, inclusive você.
A primeira regra você acabou de conhecer: nunca fale sem permissão. Só há uma
refeição por dia, servida às dez da manhã. Sua roupa, a partir de hoje é esse
macacão. Lave-o se quiser andar limpo. Fará todas as tarefas que forem
solicitadas. Há aulas de aritmética e discurso aos sábados, mas não creio que
você poderá participar e, por fim, reze para que os outros internos gostem de
você.
Ainda meio tonto do golpe que o derrubou, Edgar viu
a porta se fechando à sua frente e novamente se viu trancado e sozinho naquele
quarto de pedra. Sentiu, então, uma enorme vontade de chorar, mas não o fez. Sabia
que seria inútil; lágrimas não resolveria sua situação. Levantou-se, pegou seu
livro e o abriu em uma página aleatória, como sempre costumava fazer.
“... o fim dessa
batalha sangrenta. À minha frente vi muitos amigos, todos mortos. E eu? Vivo,
infelizmente. Os dias se passaram e continuei lá no campo de batalha, ferido,
esperando por socorro durante dias. Eu era minha única companhia, além dos cadáveres.
Quando aprendemos a viver sozinhos, passamos a ser companheiros de nós mesmos. Somos
nossos melhores amigos, rimos sós, ponderamos nossas próprias atitudes. Somos,
muitas vezes, duais na individualidade e individuais na dualidade”.
Por algum tempo Edgar ficou tentando entender o que
o protagonista do livro queria dizer com “duais
na individualidade e individuais na dualidade”, mas logo desistiu,
deitou-se na cama e ficou pensando no pesadelo que havia tido, em seu pai e
também na vida tranquila que eles tinham há algum tempo atrás. Em meio a tantos
pensamentos e uma fome que já nem o perturbava mais, Edgar lentamente adormeceu.
Caramba amigo,
ResponderExcluirCada capítulo uma emoção..
Adorando acompanhar essa maravilhosa história..
Curtindo muito.. Parabéns querido!
Obrigado minha amiga. Fico feliz que esteja gostando.
ExcluirAbraços.
Caraca.......criei ódio dessa Olga rsrs
ResponderExcluirMuito bom, esperando o próximo :)
A mulher é carne de pescoço, né? kkkkk
ExcluirLogo estará disponível o próximo capítulo Greg.
Grande abraço!
Coitado. Escapou da solidão e do frio agonizante para cair nas garras do autoritarismo explorador do orfanato. Vou ficar na torcida aqui para que as coisas melhorem para o pequeno Edgar.
ResponderExcluirParece-me que o Edgar é um exemplo de esperança. Mesmo no fundo do poço, ele consegue sobreviver diante de tantos obstáculos. Será o livro dele o motivo de sua existência? Ou existir por causa do livro? Será que a felicidade é um sonho? A realidade é dura e cruel.
ResponderExcluirDuas coisas no conto sempre me chamaram a atenção: os olhos e o livro. Os olhos são genéticos? Parecem ser algo sobrenatural. O livro? É interessante saber que ele se "sustenta" de alguma forma pela "sabedoria" do livro. Misterioso e filosófico. O que de certa forma proporciona uma pitada de esperança de como viver a vida, já que o personagem do livro também se encontra numa situação de solidão como o Salazar.
Deve haver alguma ligação entre o livro e os olhos? Talvez seja essa dualidade: olho (diabólico) vs caráter de Edgar (Deus); ou melhor, individualidade (o "eu" triste, solitário) no coletivo (sociedade). Filosofia de Ying-Yang? O dialetismo da dualidade. A dinâmica do "eu" e o "outro".
Legal o conto. Gosto de filosofia. Vai em frente Denis!
Algumas temáticas estão sendo suavemente tratadas no desenrolar da estória, tanto sociais quanto filosóficas. Obrigado pela participação meu amigo. Grande abraço!
ExcluirA cada capítulo novas emoções, muito bom. Agora a crítica. Pena que os capítulos são minúsculos para segurar a grande expectativa. Rsrsrsrs. Estou amando meu querido,beijosss.
ResponderExcluirNesse modelo de postagem em blog não é muito legal postar capítulos muito grandes minha amiga. Alguns leitores ficam com preguiça de ler quando se deparam com um texto muito extenso. rsrs. Por isso escrevo capítulos curtos. :)
ExcluirObrigado pela visita e participação, minha amiga. Grande abraço!
Sem demagogia, esta é a melhor estória que já li nos últimos tempos. Parabéns e obrigado por compartilhá-la conosco.
ResponderExcluirMuito obrigado Celso. Fico lisonjeado com tamanho reconhecimento. :)
ExcluirCoitado do garoto.
ResponderExcluirQue bruxa esta Olga.
Histórias, estórias e outras polêmicas
"Quando aprendemos a viver sozinhos, passamos a ser companheiros de nós mesmos."
ResponderExcluirÉ uma pena uma criança ter que aprender uma realidade tão dura.
Capítulos muito bem escritos, parabéns.