CHARLIE, O PALHAÇO

by 11.3.15 12 comentários




“Não precisamos mais de você”, foi o que disseram. Depois de uma vida inteira alegrando corações, percorrendo países por todo o mundo, contando piadas e divertindo crianças, fora simplesmente descartado do Circo Abrazador. Não como os leões, camelos e elefantes que foram proibidos por lei, mas simplesmente porque achavam que Palhaços não eram mais atrativos nos Circos modernos.
Saiu do trailler do mágico, arrasado. O circo era sua casa, sua paixão, sua vida. Não tinha para onde ir e nem sequer sabia fazer qualquer coisa na vida que não fossem palhaçadas. As lágrimas escorriam pelo seu rosto fazendo borrar a maquiagem que levara horas para preparar e que não mais usaria. Sabia que àquela hora da noite todos estavam se aprontando para o espetáculo das 10. O mágico, os malabaristas, os músicos, os anões, as dançarinas e até Maria Luiza — a equilibrista que ele sempre amou, mas nunca foi correspondido. Todos estariam lá, menos Charlie, o Palhaço.
Deixou-se jogar no chão, se escorando num monte de entulho. Aos prantos, fitava as luzes do circo que piscavam aleatoriamente em diversas cores. Era realmente maravilhoso. A tristeza que sentia foi dando espaço à amargura. A amargura foi, de repente, se tornando solidão. A solidão, por sua vez, foi transformando-se em medo. E o medo, cada vez mais intenso, de súbito se tornou ódio. Um ódio insano e incontrolável. Um ódio doentio por aqueles que o desprezaram. Todos eles. Passou a mão no rosto para enxugar as lágrimas, borrando ainda mais a maquiagem, e levantou-se.
Já estava quase na hora de começar o show. As arquibancadas estavam cheias, os pipoqueiros circulavam entre as colunas de espectadores, os músicos se posicionavam com seus instrumentos e o mágico se preparava para iniciar seu espetáculo. Seria um belo espetáculo. Charlie o assistiu quase que por completo, espreitando por debaixo das arquibancadas, entre os pés da plateia. O show chegara ao clímax e as pessoas gritavam e aplaudiam o número mais importante da noite, em que anões, bailarinas, malabaristas, equilibristas e o mágico se apresentavam juntos ao som de 1812, de Tchaikovsky.
Chegara a hora. O Palhaço fechou todas as saídas da grande tenda despercebidamente e, com uma das tochas roubada dos cuspidores de fogo, começou incendiar a lona, correndo às gargalhadas ao redor do circo e ateando fogo em toda a circunferência. A risada histérica e doentia de Charlie se misturava ao som da música e gritos de desespero. As labaredas cresciam e cresciam. A lona se incendiava por inteira, fazendo chover plástico em chamas sobre as cabeças enlouquecidas. Tentavam correr do fogo, mas o fogo corria até seus corpos. Iam todos queimando num espetáculo primoroso que iluminava a noite como as luzes de nenhum circo jamais poderiam iluminar.

Sentado no chão, Charlie assistia ao fim do espetáculo. Divertindo-se como nunca. Divertindo-se como criança diante de um palhaço. E a alegria do Palhaço, no fim das contas, foi ver o circo pegar fogo.

Girotto Brito

Escritor

Poeta e contista, autor do livro "Os três lados da moeda: vida e morte em poesia" e colaborador em diversas antologias de contos.

12 comentários:

  1. Nossa Dênis, meus parabéns você conduz todo o texto com uma leveza que não tem como não mergulharmos na história, um fim trágico porém poeticamente belo!

    Parabéns!

    http://joandersonoliveira.blogspot.com.br/

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  2. "A alegria do palhaço é ver o circo pegar fogo", mas aqui o desespero do palhaço fez ele perder a cabeça e por fogo no circo, coitadinho, deu dó!
    Amigo, contastes muito bem aqui o que é o desespero de um fim de carreira, me fez lembrar do meu tempo de menina que amava ir ao circo exatamente para ver as palhaçadas do palhaço!
    Alegoricamente é assim que muitas almas se sentem, ao verem seus sonhos indo por água abaixo!
    Amei ler!
    Deixo aqui um abraços apertado!

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    1. "A alegria do palhaço é ver o circo pegar fogo" kkkk
      Devia ter inserido essa frase no conto.
      Obrigado pelo elogio e pela visita, amiga Ivone.

      Grande abraço!

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  3. Final inusitado, Dênis. Habilmente foi tecendo a trama, desenvolvendo texto num crescendo, fazendo-nos refletir sobre esses contrates e sutis mudanças de humores do ser humano, onde convivem no mesmo indivíduo o herói e o vilão, a dualidade de sentimentos que afloram conforme a situação, que reagem a cada estimulo, que surpreende até ele próprio. Como "a alegria do Palhaço, no fim das contas, foi ver o circo pegar fogo." Ninguém esperava...

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    1. Boa análise, Fábio.
      Obrigado pelo elogio e também pela visita.
      Abraços!

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  4. Palhaço também chora, também é gente. Pegar fogo, aqui, tem duplo sentido. Amei te ler.
    Você escreve com muita à-vontade e nos mostra todo o "palco".

    Tudo de bom!

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  5. Parabéns não só pelo texto em si, mas pelo desfecho. Me despertou uma sensação de "meu deus, era tão óbvio, como não pude deduzir isto antes?" e mesmo assim tu conseguiu me surpreender. Frases de impacto são tudo, tu sabe usá-las bem.

    Levei a história para a vida. Tantas pessoas que acabam por fazerem algo a vida inteira e quando fracassam deixam tudo morrer, assim, por tão pouco.

    Parabéns, Girotto! Texto impecável.

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    1. Obrigado, Carol. :)
      Realmente, há quem se dedica tanto a uma atividade, e por tanto tempo, que acaba tornando essa atividade todo o seu mundo. A decepção em ver esse mundo desmoronar pode ter graves consequências. Valeu pelo elogio e pela visita, volte sempre.
      Abraços!

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  6. Imagine todo esse final acontecendo ao som apoteótico de 1812? Epicamente insano! (Sou apaixonado por música clássica...)
    É engaçado como aquilo que, no início, é apenas um meio de sobrevivência, vai aos poucos se tornando no sentido de toda a vida do indivíduo. Isso acontece muito em nossa sociedade atual, embora sob aspectos diferentes... Afinal, somos escravos de nossas funções. Elas se tornam a nossa vida.
    Seu conto foi incrível. Gostei muito como você fez a transição de sentimentos do personagem, em fases, mostrando assim o surgimento sutil da loucura.
    Gosto muito de escrever contos também, na verdade, o meu gênero favorito. Estou até pensando em passá-los a publicá-lo no meu blog... Uma decisão difícil, rs.

    Abraços,
    Diego.

    pecasdeoito.blogspot.com.br

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    1. Eu estava ouvindo a música no momento em que escrevia o conto e achei a trilha sonora perfeita para a trama. Rsrs
      Fico feliz que tenha gostado e agradeço a visita. Vou agora mesmo conhecer seu blog.
      Abraços!

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