Já passava das onze horas da manhã quando um feixe
de luz que adentrava por uma falha no telhado focou o rosto de Edgar e o fez
acordar. Estava em um quarto estranho e, durante alguns segundos, buscou em sua
memória como havia parado ali. Era um quarto pequeno, como um guarda-roupa e a
cama em que estava deitado, apenas. Uma janela circular de vidraça colorida
escondia-se atrás de uma cortina vermelha à sua frente e as lajotas do piso lhe
chamavam a atenção pelas figuras de cavaleiros montados, brasão da família
Martinez. Ao seu lado, uma porta que dava acesso ao banheiro e à frente,
próximo da janela, outra porta que levava aos outros cômodos da casa.
A lembrança chegou e com ela a dor. Todo o alicerce
que sustentava as colunas de sua vida havia cedido e Edgar se sentia caindo num
abismo de insegurança e medo. Uma angústia imensurável dava-lhe um nó na
garganta e já sem forças para manter-se forte encostou a cabeça no travesseiro
e chorou, descontroladamente, expulsando todo aquele aperto que sentia esmagar
seu coração. Por alguns minutos suas lágrimas molharam a fronha do travesseiro,
até que não as houvesse mais.
Edgar procurou seu livro no bolso aonde havia
colocado, mas não o encontrou. Estava vestindo outras roupas que não eram as
suas e o livro estava na cabeceira da cama. Pegou-o e abriu uma página
aleatória. Já decidido a se acalmar, leu um pequeno trecho de O homem que tudo sabia:
“... e a tempestade
cessou. As árvores estavam destruídas, as casas ao chão, os barcos naufragados
e mundo ao avesso. Em meio ao caos, só me restava acreditar que tudo aquilo
aconteceu com um único propósito, o de testar minha capacidade de superação.”
O acaso não poderia ter escolhido um trecho melhor
para aquele momento. As palavras do homem
que tudo sabia deram um novo ânimo para Edgar e confortaram seu espírito. E
mesmo que ainda houvesse muita dor, insegurança e medo, ele estava decidido a
superar tudo aquilo de alguma maneira.
A porta se abriu de repente e uma menina entrou com
uma bandeja nas mãos. Assustado, Edgar fechou os olhos rapidamente e se encolheu
contra a cabeceira da cama.
— Não precisa ter medo, vim apenas lhe trazer seu
almoço. — disse a menina tentando acalmar o garoto — Me chamo Meddilyn e sou
filha única do casal que te trouxe para cá e fomos vizinhos por muito tempo,
apesar de não nos conhecermos.
Edgar permaneceu calado e com os olhos fechados.
— Tudo bem se não quer conversar agora. Quando
estiver de barriga cheia e mais tranquilo a gente pode conversar e até brincar
se você quiser. Vou deixar sua comida aqui no canto da cama, cuidado para não
derrubar, senão mamãe me mata.
Enquanto Meddilyn colocava a bandeja na cama, Edgar
abriu os olhos timidamente para enxergá-la.
Ela tinha cabelos longos e cacheados, ruivos como seus olhos, a pele branca como a neve e um rosto muito bonito. Era a primeira mulher
jovem que Edgar via. Nunca teve mãe ou irmã, e as poucas mulheres que havia
visto em sua vida eram velhas comerciantes que iam ao sítio comprar queijos de
seu pai. Nada se comparava a Meddilyn, ela era linda. E o mais importante:
tinha aquele espectro invejável de toda criança. A pureza, a bondade, o
caráter. Fechou os olhos antes que ela pudesse perceber que estava sendo
observada.
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♠ ♠
Durante três dias Edgar permaneceu no quarto, calado
e fechando os olhos toda vez que alguém entrava. Recebia a visita do Sr.
Martinez e também da sua esposa, mas quem mais ia até o quarto era Meddilyn,
para levar comida ou recolher a bandeja.
Na cozinha, longe dos ouvidos do garoto, as
conversas eram sempre as mesmas.
— Eu acho que ele é cego. — dizia a Sra. Adelice —
Lembram que o Salazar sempre o escondia de todos que iam lá no sítio?
— Mas mamãe, para quê um cego precisa de um livro?
— Isso eu não sei, minha filha. Pode ser apenas uma
lembrança de seu pai. — respondeu a Sra. Adelice.
— Não, ele não é cego. — interveio Martinez —
Lembro bem que ele olhava para a casa em chamas com muita atenção. E se o
Salazar morreu mesmo por causa da peste, como disse o garoto, então de onde
veio aquele fogo? Uma pessoa que está definhando na cama não teria forças para
atear fogo numa casa, e ele nem tinha razão para fazer isso. Acredito que foi a
criança que incendiou sua própria casa.
— Mas por que, marido?
— Não faço ideia. — responde Martinez pensativo.
— Seja como for, não podemos ficar com ele. Os
negócios não estão indo muito bem e já nos falta muita coisa. E pelo que vejo,
ele requer cuidados que nós não temos condições de oferecer. — disse a Sra.
Adelice ao marido.
— Mas mamãe, e o que será dele?! Não tem para onde
ir. — interferiu a pequena Meddilyn, preocupada.
— Eu sei que as coisas não vão bem, Adelice. Esse
inverno está castigando as plantações e muitos dos nossos compradores de queijo
estão evitando viajar para esse lado do país por causa desse maldito surto de
peste. Mas não quero ter que entregar essa criança à própria sorte. É uma
imensa crueldade!
— Eu sei, marido. Mas que opção nós temos? Se
continuarmos a alimentar esse garoto, logo faltará para Meddilyn. É isso que
você quer?
— Claro que não.
Por alguns minutos o senhor e a senhora Martinez
ficaram calados, sentados à mesa circular, refletindo sobre o que fazer com o
garoto lá do quarto. Meddilyn, no entanto, foi lá recolher a bandeja que
deixara no almoço.
— Olá meu amigo. Vou te chamar de Salazar, já que
você nunca disse seu nome. Tudo bem? — falou a menina para o garoto sentado na
beira da cama com seu livro no colo — Estão conversando sobre você lá na
cozinha e temo que não possa ficar conosco por muito mais tempo. Papai e mamãe
estão preocupados com você, mas as coisas não estão fáceis para nós. Entende?
Espero que tomem a melhor decisão possível.
Edgar permanecia quieto e com seus olhos fechados.
Como sempre.
— Minha mãe acha que você é cego. Você é cego? Se for,
por que precisa desse livro? Ai, ai. Nem sei por que te faço essas perguntas,
você nunca responde. Tenho que ir agora, às oito trago sua janta — disse
Meddilyn já voltando-se para a porta de saída.
— Meu nome é Edgar.
A menina sentiu seus pelos arrepiarem ao ouvir pela
primeira vez a voz do garoto. Quando se virou, Edgar estava de pé, olhando para
ela.
— Oh, meu Deus! — disse euforicamente a garota
tentando conter seu pavor — Que olhos são esses?!
— Por favor, não sinta medo. Eu nasci assim — falou
Edgar fazendo sinal com as mãos para que ela não fizesse muito barulho.
Meddilyn permaneceu imóvel por alguns segundos até
tomar coragem e se aproximar lentamente do garoto.
— Parecem que estão pegando fogo — descreveu a
menina inocentemente.
— Eu sei. Meu pai sempre me disse que eles são
únicos. E acredito que sejam. Mas não conte isso par...
— Espere um pouco, já eu volto. — interrompeu a menina
antes de sair correndo pela porta.
Na cozinha, o casal Martinez ainda conversava sobre
Edgar.
— É uma decisão muito complicada e precisamos
escolher o que for melhor para nós e para o garoto — disse Martinez à sua
esposa.
— Poderíamos mandá-lo para o orfanato lá de Santa
Brígida. — sugeriu a mulher.
— Jamais! Ouvi falar de muitos casos de maus tratos
aos órfãos de lá. E não quero que o filho do Salazar pass...
— Mamãe! Papai! Venham ver isso. Ele falou e também
abriu os olhos! — disse a garota de cabelos dourados interrompendo a conversa dos pais — Ele me disse que se
chama Edgar e vocês não vão acreditar no que vão ver. Ele tem os olhos
vermelhos!
Eufórica, a menina agarrou-se nas mãos de seus pais
e os levou até o quarto de Edgar. Martinez e sua esposa estavam meio confusos
com todo aquele estardalhaço, afinal, o que Meddilyn queria dizer com “olhos
vermelhos”? A porta se abriu e para a surpresa de todos, inclusive da menina, o
quarto estava absolutamente vazio. Meddilyn debruçou-se no chão para olhar
debaixo da cama, abriu o guarda-roupa, mas nada. Martinez verificou então que o
trinco da janela circular estava quebrado e todos tiveram a certeza de que o
garoto havia fugido.
Durante horas a família Martinez e outras famílias
vizinhas procuraram por Edgar pelas redondezas, mas em vão, o garoto
simplesmente havia desaparecido e ali, naquelas terras, tudo que restou do menino
de olhos vermelhos foram as estórias que as pessoas passaram a contar sobre
ele, baseadas no que Meddilyn relatou.
Alguns diziam que ele podia queimar as coisas com
seus olhos e que havia queimado sua própria casa com seu pai dentro. Outros contavam
que Edgar havia morrido no incêndio junto com seu pai e que, na verdade, o que
estava na casa dos Martinez era apenas o seu espírito à procura de paz. E tinha
até quem acreditava que Edgar era o próprio demônio, surgido das chamas da casa
de seu pai para trazer maldade ao mundo.
E assim, entre a história e as estórias contadas,
Edgar foi imortalizado pelo povo daquela região como o menino dos olhos vermelhos.
Desaparece tão precocemente, linda a história pena que ele foi imortalizado com muitas desconfiança espero que ainda não tenha chegado ao fim do menino dos olhos vermelhos. . Cada vez que leio vem mais ideias mirabolantes em minha imaginação fértil. .
ResponderExcluirCara, muito massa essa estória!
ResponderExcluirEstou gostando demais. Não demora para postar a próxima parte :)
O mistério e um pouco de suspense apimenta a estória. Legal Denis!
ResponderExcluirGosto de contos assim...com mistérios, pois fica mais interessante a leitura!!!
ResponderExcluirMuito bom!
bjus
http://www.elianedelacerda.com
Está esquentando.
ResponderExcluirPena que vamos ter que esperar a continuação.
Histórias, estórias e outras polêmicas
Muito bom! Parabéns.
ResponderExcluirgostei do blog! Seguindo...
Até mais!
Lu
http://resenhasdalu.blogspot.com.br/
Seja bem vinda Luiza :)
Excluirkkkkk arrebentou amigo...
ResponderExcluirBom demais!!!!!!
Parabéns pelo conto e sucesso sempre!
Puxa que puxa! Sua estória é muito linda! Parabéns pelo jeito de contá-la.
ResponderExcluirSucesso para você e paz para seu menino dos olhos vermelhos.
Ansiosa pelo próximo capitulo. Beijos
ResponderExcluirE agora ele está só... E é somente uma criança... Muito triste isso, indo conferir o que vem a seguir
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