O MENINO DOS OLHOS VERMELHOS - CAPÍTULO 4: Três dias de paz

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Já passava das onze horas da manhã quando um feixe de luz que adentrava por uma falha no telhado focou o rosto de Edgar e o fez acordar. Estava em um quarto estranho e, durante alguns segundos, buscou em sua memória como havia parado ali. Era um quarto pequeno, como um guarda-roupa e a cama em que estava deitado, apenas. Uma janela circular de vidraça colorida escondia-se atrás de uma cortina vermelha à sua frente e as lajotas do piso lhe chamavam a atenção pelas figuras de cavaleiros montados, brasão da família Martinez. Ao seu lado, uma porta que dava acesso ao banheiro e à frente, próximo da janela, outra porta que levava aos outros cômodos da casa.
A lembrança chegou e com ela a dor. Todo o alicerce que sustentava as colunas de sua vida havia cedido e Edgar se sentia caindo num abismo de insegurança e medo. Uma angústia imensurável dava-lhe um nó na garganta e já sem forças para manter-se forte encostou a cabeça no travesseiro e chorou, descontroladamente, expulsando todo aquele aperto que sentia esmagar seu coração. Por alguns minutos suas lágrimas molharam a fronha do travesseiro, até que não as houvesse mais.
Edgar procurou seu livro no bolso aonde havia colocado, mas não o encontrou. Estava vestindo outras roupas que não eram as suas e o livro estava na cabeceira da cama. Pegou-o e abriu uma página aleatória. Já decidido a se acalmar, leu um pequeno trecho de O homem que tudo sabia:

“... e a tempestade cessou. As árvores estavam destruídas, as casas ao chão, os barcos naufragados e mundo ao avesso. Em meio ao caos, só me restava acreditar que tudo aquilo aconteceu com um único propósito, o de testar minha capacidade de superação.”

O acaso não poderia ter escolhido um trecho melhor para aquele momento. As palavras do homem que tudo sabia deram um novo ânimo para Edgar e confortaram seu espírito. E mesmo que ainda houvesse muita dor, insegurança e medo, ele estava decidido a superar tudo aquilo de alguma maneira.
A porta se abriu de repente e uma menina entrou com uma bandeja nas mãos. Assustado, Edgar fechou os olhos rapidamente e se encolheu contra a cabeceira da cama.

— Não precisa ter medo, vim apenas lhe trazer seu almoço. — disse a menina tentando acalmar o garoto — Me chamo Meddilyn e sou filha única do casal que te trouxe para cá e fomos vizinhos por muito tempo, apesar de não nos conhecermos.

Edgar permaneceu calado e com os olhos fechados.

— Tudo bem se não quer conversar agora. Quando estiver de barriga cheia e mais tranquilo a gente pode conversar e até brincar se você quiser. Vou deixar sua comida aqui no canto da cama, cuidado para não derrubar, senão mamãe me mata. 

Enquanto Meddilyn colocava a bandeja na cama, Edgar abriu os olhos timidamente para enxergá-la.



Ela tinha cabelos longos e cacheados, ruivos como seus olhos, a pele branca como a neve e um rosto muito bonito. Era a primeira mulher jovem que Edgar via. Nunca teve mãe ou irmã, e as poucas mulheres que havia visto em sua vida eram velhas comerciantes que iam ao sítio comprar queijos de seu pai. Nada se comparava a Meddilyn, ela era linda. E o mais importante: tinha aquele espectro invejável de toda criança. A pureza, a bondade, o caráter. Fechou os olhos antes que ela pudesse perceber que estava sendo observada.

♠ ♠ ♠

Durante três dias Edgar permaneceu no quarto, calado e fechando os olhos toda vez que alguém entrava. Recebia a visita do Sr. Martinez e também da sua esposa, mas quem mais ia até o quarto era Meddilyn, para levar comida ou recolher a bandeja.
Na cozinha, longe dos ouvidos do garoto, as conversas eram sempre as mesmas.

— Eu acho que ele é cego. — dizia a Sra. Adelice — Lembram que o Salazar sempre o escondia de todos que iam lá no sítio?
— Mas mamãe, para quê um cego precisa de um livro?
— Isso eu não sei, minha filha. Pode ser apenas uma lembrança de seu pai. — respondeu a Sra. Adelice.
— Não, ele não é cego. — interveio Martinez — Lembro bem que ele olhava para a casa em chamas com muita atenção. E se o Salazar morreu mesmo por causa da peste, como disse o garoto, então de onde veio aquele fogo? Uma pessoa que está definhando na cama não teria forças para atear fogo numa casa, e ele nem tinha razão para fazer isso. Acredito que foi a criança que incendiou sua própria casa.
— Mas por que, marido?
— Não faço ideia. — responde Martinez pensativo.
— Seja como for, não podemos ficar com ele. Os negócios não estão indo muito bem e já nos falta muita coisa. E pelo que vejo, ele requer cuidados que nós não temos condições de oferecer. — disse a Sra. Adelice ao marido.
— Mas mamãe, e o que será dele?! Não tem para onde ir. — interferiu a pequena Meddilyn, preocupada.
— Eu sei que as coisas não vão bem, Adelice. Esse inverno está castigando as plantações e muitos dos nossos compradores de queijo estão evitando viajar para esse lado do país por causa desse maldito surto de peste. Mas não quero ter que entregar essa criança à própria sorte. É uma imensa crueldade!
— Eu sei, marido. Mas que opção nós temos? Se continuarmos a alimentar esse garoto, logo faltará para Meddilyn. É isso que você quer?
— Claro que não.

Por alguns minutos o senhor e a senhora Martinez ficaram calados, sentados à mesa circular, refletindo sobre o que fazer com o garoto lá do quarto. Meddilyn, no entanto, foi lá recolher a bandeja que deixara no almoço.

— Olá meu amigo. Vou te chamar de Salazar, já que você nunca disse seu nome. Tudo bem? — falou a menina para o garoto sentado na beira da cama com seu livro no colo — Estão conversando sobre você lá na cozinha e temo que não possa ficar conosco por muito mais tempo. Papai e mamãe estão preocupados com você, mas as coisas não estão fáceis para nós. Entende? Espero que tomem a melhor decisão possível.

Edgar permanecia quieto e com seus olhos fechados. Como sempre.

— Minha mãe acha que você é cego. Você é cego? Se for, por que precisa desse livro? Ai, ai. Nem sei por que te faço essas perguntas, você nunca responde. Tenho que ir agora, às oito trago sua janta — disse Meddilyn já voltando-se para a porta de saída.

— Meu nome é Edgar.

A menina sentiu seus pelos arrepiarem ao ouvir pela primeira vez a voz do garoto. Quando se virou, Edgar estava de pé, olhando para ela.

— Oh, meu Deus! — disse euforicamente a garota tentando conter seu pavor — Que olhos são esses?!
— Por favor, não sinta medo. Eu nasci assim — falou Edgar fazendo sinal com as mãos para que ela não fizesse muito barulho.

Meddilyn permaneceu imóvel por alguns segundos até tomar coragem e se aproximar lentamente do garoto.

— Parecem que estão pegando fogo — descreveu a menina inocentemente.
— Eu sei. Meu pai sempre me disse que eles são únicos. E acredito que sejam. Mas não conte isso par...
— Espere um pouco, já eu volto. — interrompeu a menina antes de sair correndo pela porta.

Na cozinha, o casal Martinez ainda conversava sobre Edgar.

— É uma decisão muito complicada e precisamos escolher o que for melhor para nós e para o garoto — disse Martinez à sua esposa.
— Poderíamos mandá-lo para o orfanato lá de Santa Brígida. — sugeriu a mulher.
— Jamais! Ouvi falar de muitos casos de maus tratos aos órfãos de lá. E não quero que o filho do Salazar pass...
— Mamãe! Papai! Venham ver isso. Ele falou e também abriu os olhos! — disse a garota de cabelos dourados interrompendo  a conversa dos pais — Ele me disse que se chama Edgar e vocês não vão acreditar no que vão ver. Ele tem os olhos vermelhos!

Eufórica, a menina agarrou-se nas mãos de seus pais e os levou até o quarto de Edgar. Martinez e sua esposa estavam meio confusos com todo aquele estardalhaço, afinal, o que Meddilyn queria dizer com “olhos vermelhos”? A porta se abriu e para a surpresa de todos, inclusive da menina, o quarto estava absolutamente vazio. Meddilyn debruçou-se no chão para olhar debaixo da cama, abriu o guarda-roupa, mas nada. Martinez verificou então que o trinco da janela circular estava quebrado e todos tiveram a certeza de que o garoto havia fugido.
Durante horas a família Martinez e outras famílias vizinhas procuraram por Edgar pelas redondezas, mas em vão, o garoto simplesmente havia desaparecido e ali, naquelas terras, tudo que restou do menino de olhos vermelhos foram as estórias que as pessoas passaram a contar sobre ele, baseadas no que Meddilyn relatou.
Alguns diziam que ele podia queimar as coisas com seus olhos e que havia queimado sua própria casa com seu pai dentro. Outros contavam que Edgar havia morrido no incêndio junto com seu pai e que, na verdade, o que estava na casa dos Martinez era apenas o seu espírito à procura de paz. E tinha até quem acreditava que Edgar era o próprio demônio, surgido das chamas da casa de seu pai para trazer maldade ao mundo.  
E assim, entre a história e as estórias contadas, Edgar foi imortalizado pelo povo daquela região como o menino dos olhos vermelhos.



Girotto Brito

Escritor

Poeta e contista, autor do livro "Os três lados da moeda: vida e morte em poesia" e colaborador em diversas antologias de contos.

11 comentários:

  1. Desaparece tão precocemente, linda a história pena que ele foi imortalizado com muitas desconfiança espero que ainda não tenha chegado ao fim do menino dos olhos vermelhos. . Cada vez que leio vem mais ideias mirabolantes em minha imaginação fértil. .

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  2. Cara, muito massa essa estória!
    Estou gostando demais. Não demora para postar a próxima parte :)

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  3. O mistério e um pouco de suspense apimenta a estória. Legal Denis!

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  4. Gosto de contos assim...com mistérios, pois fica mais interessante a leitura!!!
    Muito bom!
    bjus
    http://www.elianedelacerda.com

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  5. Está esquentando.
    Pena que vamos ter que esperar a continuação.

    Histórias, estórias e outras polêmicas

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  6. Muito bom! Parabéns.
    gostei do blog! Seguindo...
    Até mais!
    Lu
    http://resenhasdalu.blogspot.com.br/

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  7. kkkkk arrebentou amigo...
    Bom demais!!!!!!
    Parabéns pelo conto e sucesso sempre!

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  8. Puxa que puxa! Sua estória é muito linda! Parabéns pelo jeito de contá-la.
    Sucesso para você e paz para seu menino dos olhos vermelhos.

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  9. Ansiosa pelo próximo capitulo. Beijos

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  10. E agora ele está só... E é somente uma criança... Muito triste isso, indo conferir o que vem a seguir

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